UM
"SANTO DE CARNE E OSSO"
©
Ilídio Martins/Luso-Americano
O
Luso-Americano foi espreitar há cerca de três meses atrás,
aquando de mais uma passagem por Newark, uma das sessões
públicas de Mário Caetano no Sport Clube Português, e observar
mais de perto um curioso personagem de que temos vindo a falar ao
logo das três últimas edições e que esteve na origem do
dossier "Fé, Cultos e Crendices" que hoje termina. Não
totalmente satisfeito com o que viu, o Luso atreveu-se a ir mais
longe. Disfarçou-se de paciente, inventou uma história mais ou
menos complicada, e foi mesmo a uma consulta privada com o santo
de carne e osso. O resultado destas aventuras está no texto que
se segue. As conclusões que há a tirar - se é que há
conclusões a tirar - cada um que tire as suas. Pela nossa parte,
apenas lhe contamos o que vimos e ouvimos. E garantimos-lhe que
não foi pouco.
SESSÃO PÚBLICA
Apesar do frio e do mau tempo que chegava e sobrava para me furtar
àquele tipo de compromissos que podem sempre esperar para outro
dia, ou que não custa muito a fingir que não existem, resolvi
descalçar as pantufas e munir-me de uma dose bastante de coragem
para espreitar uma sessão pública de Mário Caetano anunciada
para uma quarta-feira no salão do Sport Club Português, em
Newark, às sete e meia da noite, e satisfazer assim uma
curiosidade antiga que se foi transformando num compromisso
profissional.A sessão - amplamente publicitada na imprensa com um
longo texto explicativo acerca dos poderes e dos feitos do santo
de carne e osso (o título do anúncio) -, começou cerca de uma
hora depois do previsto, sem que nunca me tenha apercebido de que
as cerca de cento e cinquenta almas presentes, que se entretinham
a contar umas às outras casos de maleitas e de curas salpicados
aqui e ali por histórias do arco da velha, tenham alguma vez dado
mostras do mais pequeno sintoma de impaciência por tamanha
demora.
Gente de todas as idades
Além do excesso de paciência dos presentes e de muito menos
gente do que eu esperava - mais tarde Mário Caetano explicaria
que a causa de tão pouca gente (para o habitual) se devia às
más condições do tempo -, a primeira e única surpresa que tive
aconteceu quando me apercebi da presença de pessoas de todas as
idades, algumas até muito jovens, e de um quase equilíbrio
numérico entre os sexos.
Um cenário a preceito
Embora desta vez não constituísse propriamente uma surpresa, o
segundo motivo que me chamou especial atenção foi o rigor do
cenário, pormenorizadamente estudado e mais ou menos
impressionante, sobretudo a grande quantidade de flores brancas -
pagas pelos fiéis e trazidas cerca de meia hora antes da abertura
do salão por funcionários de um conhecido florista (a quem
Mário Caetano, citando o nome, se referiria mais tarde como sendo
o mais barato da comunidade) - que cobriam completamente um enorme
altar improvisado à boca do palco e onde ardiam umas dezenas de
velas.
Do cenário faziam parte ainda as bandeiras portuguesa e
americana, uma em cada um dos lados do improvisado altar, uma
bandeira da Igreja Católica Cristã Nova Jerusalém (fundada por
Mário Caetano) e um fundo de música sacra na amplificação
sonora do salão. Tudo, como se vê, cuidado ao mínimo detalhe, e
onde nada parecia ter deixado ao acaso.
Ao acaso não foi deixada também a porta de entrada do salão,
onde uma pequena mesa exibia uma série de objectos para venda
(cassetes de vídeo, livros, medalhas, santinhos e outros objectos
de que já não me lembro), e onde era possível marcar uma
consulta com Mário Caetano.
Silêncio que vai começar
A sessão propriamente dita começou com um reduzir de luzes do
salão, seguindo-se um silêncio expectante. Logo de seguida, uma
das colaboradoras de Mário Caetano sai de uma das portas laterais
com uma imagem de Nossa Senhora dos Milagres - que segue o vidente
por todo o lado e que o ano passado, segundo o próprio Mário
Caetano, foi carregada de ouro para Portugal -, e coloca-a
solenemente no altar. Instantes depois, a mesma colaboradora, num
gesto que suponho simbólico, colocou o que me pareceu ser um
objecto de ouro no manto da imagem, num local bem visível, a que
se seguiram outros oferecidos por não sei quem.
Minutos depois, Mário Caetano sai da mesma porta vestido com um
hábito de monge e uma estola lilás ao pescoço. E fez-se ainda
mais silêncio. Aliás, o silêncio foi a palavra que Mário
Caetano mais repetiu durante as quase três horas que durou a
sessão, usada quase sempre a propósito do sofrimento dos homens
e que nunca se cansou de sublinhar e ilustrar com histórias mais
ou menos terríveis.
As chagas de Cristo
Após um breve ajoelhar em frente ao altar, Mário Caetano
começou por contar aos presentes a história de como as chagas de
Cristo vêm às suas mãos por alturas da Semana Santa, desde há
34 anos. Depois contou que estava desde o dia anterior a pedir a
Nossa Senhora para que esta intercedesse junto de Jesus Cristo no
sentido de lhe fazer aparecer as chagas nas mãos uma semana antes
do previsto. A ser possível, Mário Caetano poderia mostrar em
Newark as chagas nas suas mãos a quem as quisesse ver, até
porque sabia muito bem que a maioria dos mortais já ouviu falar
na reprovadíssima história do apóstolo S.Tomé, o tal que quis
ver para crer. E nunca se sabe até que ponto a atitude deste
apóstolo conquistou seguidores nos tempos actuais. Mas Nossa
Senhora - ou Jesus Cristo - não ouviu as pretensões do vidente.
Pelo que as chagas só lhe deverão ter aparecido precisamente na
semana em que Mário Caetano se encontrava em Jerusalém, local
para onde disse que ia após a sua digressão pelos Estados
Unidos.
Milagres, senhor
O fundador da Igreja Católica Cristã Nova Jerusalém e
considerado por Mário Soares como peregrino da paz - segundo o
texto do anúncio - contou depois uma história de uma criança
que morreu no Hospital da Estefânia vítima de cancro nos
intestinos, após, numa extrema agonia, ter vomitado o fígado
desfeito. Foi uma história de pôr os cabelos em pé, a que
Mário Caetano, contrariamente ao que me fez supor durante o
desenvolvimento da história, não teve qualquer intervenção
milagrosa.
Seguiu-se, novamente com todos os detalhes, a história de um
milagre que tinha feito a um casal que estava presente no salão,
sobre o qual disse haver radiografias e outras provas médicas, e
a de um jovem também presente na sala, que teve um acidente
gravíssimo na cabeça, de que havia fotografias e tudo para quem
tivesse coragem para as ver, e que foi curado após lhe ter tocado
três vezes com as suas mãos. Aliás, não foram propriamente
milagres de Mário Caetano - como não se cansou de repetir a
propósito destes e doutros -, mas Deus-todo-poderoso por seu
intermédio, depois de cumprido o primeiro quesito que é de
importância fundamental: ter fé. Muita fé.
Fé e dinheiro
Ainda a propósito de fé, o beirão de Resende disse que tinha
muita na sua avó Carolina, com quem viveu na sua infância e com
quem teve uma relação muito próxima. Mário Caetano disse mesmo
não ter dúvidas de que a sua avó, apesar de falecida, se
encontrava ali naquele preciso momento. Ali presente estava
também, segundo disse, para além de Deus e Jesus Cristo, o
espírito ou a alma do doutor Sousa Martins - o seu guia de luz e
uma das maiores sumidades a nível mundial, segundo Cunha Simões,
biógrafo do vidente que escreveu um livro sobre Mário Caetano à
venda naquele salão e que me custou nada menos que trinta
dólares apesar de ter insistido num desconto.
Aliás, o dinheiro esteve várias vezes presente no discurso de
Mário Caetano ao longo de toda a sessão, especialmente quando
anunciou os produtos que tinha disponíveis para venda, por
preços que disse simbólicos, e cuja quantia apurada constituiria
uma preciosa ajuda para a alimentação e a educação das
crianças que tem a seu cargo.
Todos para o chão
Depois do terço e dos cânticos, a sessão aproximava-se
rapidamente do final tão desejado pelos presentes. Não porque
estes dessem mostras de cansaço, mas porque o melhor estava,
afinal, para vir. Após ter pedido aos seus colaboradores que
reduzissem ainda mais a luz do salão e ao encarregado de vigiar a
porta de entrada (que àquela hora já passava pelas brasas) que
não deixasse entrar ninguém, absolutamente ninguém, Mário
Caetano pediu às pessoas que avançassem para a frente, fila por
fila, para que fossem tocadas pelas suas mãos.
E foi aí que aconteceu a parte mais impressionante de toda esta
sessão, com a grande maioria das pessoas a caírem no chão após
o vidente lhes ter tocado com as mãos na cabeça durante poucos
segundos. Após alguns minutos, a maioria das pessoas que
constituía a primeira fila de candidatos a serem tocados pelas
mãos de Mário Caetano jazia no chão, em sono aparentemente
profundo, que depois o vidente acordava com um sopro.
Perguntei-lhe, umas semanas mais tarde, em entrevista para o Luso,
qual era a técnica que utilizava. Atirei-lhe com o hipnotismo,
mas ele recusou. Disse-me que eram os raios de luz que saíam das
suas mãos, que iluminam e beneficiam todos aqueles em quem toca.
E rematou que se tratava de um verdadeiro dom que Deus lhe deu que
qualquer pessoa não possui.
A sessão tinha chegado ao fim. Atrás do altar, Mário Cateano e
os seus inúmeros colaboradores entregavam-se agora à tarefa de
vender umas medalhas a 15 dólares a uma fila de pessoas que
entretanto se tinha formado, enquanto à saída do salão uma
outra colaboradora sua estendia discretamente aos que iam saindo
um recipiente onde cada um punha a quantia que entendesse.
E pronto. Apesar de Mário Cateano não se ter cansado de repetir
que naquele dia iriam acontecer milagres, a mim talvez me tenha
calhado uma praga. Saí de lá com uma razoável dor de costas e
de pernas e com os pés completamente gelados. E quase amaldiçoei
a hora em que me passou pela cabeça semelhante ideia.
CONSULTA PRIVADA
Na esperança de sabermos pormenores sobre uma consulta privada
com Mário Caetano - os que conhecemos foram-nos contados por
pessoas que consultaram o vidente, pelo que nem sempre
correspondem inteiramente, como é óbvio, à verdade dos factos
-, nada melhor do que ver para crer. Por razões que julgamos
compreensíveis de todos, recorremos a um amigo nosso (cuja
identidade, por razões compreensíveis, não podemos revelar) que
se disfarçou de paciente e inventou uma longa e complicadíssima
história que metia adultério, abuso da pinga e outras pormenores
igualmente complicados.
Depois de algumas diligências pelo telefone e de quase três
horas de espera pela resposta, conseguimos finalmente marcar uma
consulta com Mário Caetano para uma quarta-feira, às oito da
noite, no Sport Clube Português, mais precisamente no local onde
funcionou a Escola Luís de Camões, mais tarde o falido
Immigrants Credit Union e neste momento a CAFIC.
Um caso difícil
À hora marcada, o nosso colaborador, que se identificou como
Manuel António, lá estava no Sport Clube Português disposto a
pagar 80 dólares por um encontro em privado com Mário Caetano, e
a contar-lhe uma história complicadíssima com a esperança de
obter o remédio milagroso.
Só que as coisas, apesar de bem planeadas, foram-se complicando.
Sem que percebesse muito bem porquê, a hora marcada para a
consulta foi sendo adiada sucessivamente, talvez por excesso de
clientes, devido à falta de organização ou a umas cunhas
metidas à última hora. Mas o nosso Manuel António não
desistiu. Esperou que chegasse a sua vez, decido a não saír dali
sem conseguir os seus intentos.
Pecados mortais
E conseguiu. Só que a coisas voltaram a não correr bem. Quando
chegou finalmente a sua vez faltavam poucos minutos para a
meia-noite. Mário Caetano avisou-o logo que não podia dar
consultas depois da meia-noite porque "era pecado
mortal". Ou seja, a história tinha que ser abreviada. E
contada o mais rapidamente possível. Até porque o vidente tinha
dado mostras de que o iria consultar apenas por ter pena de o ter
feito esperar durante todo aquele tempo. Ponderada a situação, o
nosso Manuel António atacou a sua história à primeira
oportunidade e o mais rapidamente que pôde.
Sentado a uma pequena mesa, frente a frente com Mário Caetano,
começou por contar-lhe que tinha mulher e filhos em Portugal, que
não via há quatro anos. Que estava ilegal e que só há pouco
tempo tinha resolvido a sua situação, e que pensava agora ir a
Portugal para os trazer para a América. E coisas mais
complicadas. Que estava a viver desde há um ano com uma
brasileira, que não conseguia largar. E como isso não lhe
bastasse estava a meter-se cada vez mais nos copos. Enfim, um caso
bicudo.
Brasileiras? Tome um purgante
Mário Caetano mostrou-se conhecedor deste tipo de casos. E atirou
o primeiro conselho: "É preciso ter muito cuidado com essa
mulher brasileira. As mulheres brasileiras sabem muito, e podem
dar-lhe uma dose muito grande e estragar-lhe a vida".
O nosso paciente fingiu que não percebeu. E Mário Caetano
explicou-se melhor: "É difícil a mulher brasileira que não
saiba fazer bruxedo. Qualquer mulher sabe, por exemplo, que um
pingo da menstruação prende um homem e o homem não se consegue
ver livre dela. Qualquer mulher sabe que raspa de unha na comida
pode prender um homem. E mais tarde começa a ter problemas na
cabeça. E em bebidas, especialmente, é fácil pôr bruxedo. O
meu amigo devia tomar de ano a ano um purgante que lhe fizesse a
limpeza do sangue, sem ela saber. Tome-o em jejum e veja o que é
que deita".
O nosso amigo fingiu-se espantado. Disse-lhe que nunca lhe tinha
passado pela cabeça semelhante coisa. Recomposto, quis saber como
era isso do purgante. Mário Caetano explicou-lhe que o poderia
adquirir facilmente numa loja de produtos naturais. E arrumou a
questão por ali. Após mais uma olhada ao relógio, pediu mil
desculpas para se ausentar. Que tinha que o consultar de novo
outro dia, que tivesse paciência, que não se esquecesse de tomar
o purgante, que não podia continuar a trabalhar depois da
meia-noite porque era pecado mortal, etc., etc.
Enfim, despachou-o como pôde, e o mais rapidamente de que foi
capaz. E o nosso Manuel António ficou desta vez admirado quando
Mário Caetano lhe disse que não tinha que pagar os 80 dólares
da consulta. Mas restava-lhe apenas despedir-se com um obrigadinho
e até um dia destes. E, já fora de portas, longe de rostos
suspeitos, suspirar de alívio e comentar com os seus botões:
poderá não ser um homem santo, mas que é um santo homem lá
isso é.
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