ILÍDIO MARTINS
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Ilídio Martins
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DESENCONTROS
© Ilídio Martins/António Oliveira - Luso-Americano

A história de uma história

A história que se segue resultou de um processo de elaboração pouco corrente, talvez inovador. Foi escrita alternadamente por duas pessoas, propositadamente sem qualquer planificação prévia, e vale a pena contar a forma como foi construída. O primeiro dos dois autores começou a contar uma determinada história. Uma semana depois, foi a vez do segundo dar continuidade a essa mesma história, levando-a, obviamente, para um campo insuspeitado pelo primeiro. A vez deste regressou imediatamente a seguir, e na semana seguinte coube a vez de novo ao segundo. E assim por aí adiante. Como facilmente se depreende, tratou-se de um desafio à imaginação de cada um, uma espécie de jogo, onde o escasso tempo disponível (uma semana) de ambos constituiu um factor de risco adicional. Riscos correu também o ilustrador dos fascículos, Luís Areias, que teve que cumprir a parte que lhe coube num curtíssimo espaço de tempo e cujas ilustrações lamentavelmente não possuimos para aqui podermos reproduzir. Pronto. Aqui fica a história da história. Não para que sirva de desculpa para as falhas cometidas, mas porque nos parece interessante divulgar a ideia. Permite, também, obviamente, observar o projecto de um outro ângulo. Resta acrescentar que esta história, publicada no bissemanário Luso-Americano, foi escrita sob os pseudónimos de Carlos Reis e Matos Guerra.

I
24 de Fevereiro de 1990

Em toda a aldeia não havia quem o não conhecesse, e estimasse, muito embora ali viesse cada vez menos. Quase só nos períodos de férias, muito escassas, e no Verão um mesito. O curso, em Lisboa, levava-lhe todo o tempo. Não que ele não gostasse da aldeia, e da vida rural. Gostava e até muito. Não se cansava de o repetir aos seus colegas de Faculdade, pobres citadinos, os pseudo-burgueses que só conheciam os campos pelos filmes antigos, a preto e branco, e do bucolismo duma ou doutra obra portuguesa do tempo do liceu. Como ele detestava aquela minoria parasita, que olhava os pobres aldeãos do alto da sua arrogância torpe e desactualizada. Mas Lisboa era, e é, ainda hoje, a imagem desse poder, duma certa civilização e verdade, mesmo que essa verdade não passe de uma verdade comprada e descolorida. Tal como o próprio poder que ainda teima em a suster. Lisboa era, acima de tudo, para ele, a vulgaridade e a vaidade, pretensamente chique, exibicionista. Ainda se lembrava das palavras do avô tal como se fosse hoje. E já tinham passado sete anos (Como o tempo se consome naquela terra!) "Prepara-te para receber na cara o desprezo, a barriga cheia e os arrotos desses tipos da cidade. Mas tu és dos nossos, não torças, Carlos". Raios o partissem se havia de quebrar, pensou nessa altura. E no entanto, quantas vezes não pensou em deixar tudo e regressar a casa, à aldeia, à família, ao convívio de toda aquela gente que de seu só tinha os braços para trabalhar e a honestidade casta, quase fora de moda.
Se não fosse a Paula decerto não estaria ali hoje, vestido de fato da 'comunhão' — ele que detestava fatos — no meio de todos os que o foram esperar à estação de braços abertos. "Viva o nosso dotor", gritavam. Chegou a ter vergonha, que ele não era disso. O pai dissera-lhe que o dinheiro se havia de arranjar, mas ele tinha-o avisado: "Não quero festa. Basta-me a satisfação de ter acabado o curso e de vos ter a vocês e aos avós junto de mim". Mas quem podia ter parado o povo da aldeia? "Então podia lá ser, isso é que era bom, pela primeira vez Tornelos ia ter um "dotor" e não havia festa?" Festa e da rija, que este povo quando toca a defender os seus não olha a despesas. E foi mesmo, ali estavam todos, com flores, bem vestidos, até música e foguetes tinham. E agora ali, a olhá-los e a pensar quantos poderiam ser hoje como ele, ter um curso, uma profissão, vencer a dependência e sair daquela terra que lhes comia a carne até à alma. E alguns deles bem que o mereciam, talvez até mais do que ele, talvez dessem melhores médicos, melhores engenheiros, melhores professores, melhores juízes que aquela pequena cambada de instalados que diariamente roçava as capas pelos bancos da Faculdade. • António Oliveira

II
3 de Março de 1990

A revolta, naquele momento de paz, inquietou-se-lhe no rosto. E cresceu na sua força de transformar o mundo, jurou assumir-se até ao fim, derrubar todos os obstáculos transponíveis ou não. Era uma espécie de vertigem, uma loucura crescente, um não sei quê inexplicavelmente belo. Pouco a pouco, o rosto fechou-se-lhe, e o olhar perdeu-se no cais imenso da estação de uma província qualquer que não vem no mapa, nos compêndios de geografia das escolas de Lisboa e na troca dos colegas: "Tornelos?" E sentiu outra vez um peso no estômago, a revolta do embaraço e da vergonha que sentiu, e o avô era apenas um velho, quase impotente, de mãos cruzadas na bengala, pequena, quase roída pela traça, a ver passar quem passa e a dizer bom dia, boa tarde, boa noite, e ele ali, indefeso, terrivelmente só, e viu a sentença do professor, óbvia, demasiado óbvia, e depois outra vez vergonha de ter sentido vergonha.
— "Passa-se alguma coisa? Alguma coisa que te preocupa?"
E a memória devolveu-lhe o terror do primeiro dia, enfiado no comboio de domingo à tarde a tresandar a relato e a militares, a mãe a despedir-se na estação e a gritar não te esqueças de escrever até ficar reduzida a um ponto minúsculo e branco lá longe, mais longe ainda, até perder de vista a casa pequena incrivelmente branca do homem gordo e baixo e de chapéu branco e preto que minutos antes assobiara num pedaço de cobre redondo e pequeno a sua autoridade renovada. "Não estás contente por teres vindo?" E apetecia-lhe agora escrever, desesperadamente agora antes que o verbo se recusasse, e seriam coisas geniais a registar para sempre na conta-corrente dos dias menos fúteis que a memória não esquece, e seria agora que iria começar a escrever o livro que tantas vezes tentara e tantas vezes desistira, quase aterrorizado, vencido, impotente, como se o papel terrivelmente branco e vazio o intimidasse, o obrigasse a escrever verdades definitivas, frases geniais, e deixaria de ser, quem sabe, apenas um reles professor de província que a máquina fria e impessoal dos burocratas de Lisboa colocara nessa enorme província de Lisboa, num bairro sujo e decrépito e pobre, a tresandar a mijo e a pedintes que nasceram pedintes.
— "O que e que se passa contigo. Estás doente? Tens a certeza que estás bem? Olha p'ra mim. Passa-se alguma coisa?"
E viu, naquele instante, vinda de muito longe, de não sei que memória, uma voz quente e nostálgica de esperança: "Quem canta por conta sua/ canta sempre com razão,/ mais vale ser pardal da rua/ que rouxinol na prisão". E viu outra vez a mãe, o pai, os irmãos, a tia Deolinda que o pôs no mundo, o padre João que ficava encarnado sempre que alguém falava de mulheres, a aldeia inteira ali à sua espera. "Não. Não se passa nada ". • Ilídio Martins

III
10 de Março de 1990

A festa estava animadíssima. Aquele povo tinha posto ali o seu melhor, o mais sincero de si, pois viam nele, e no seu curso, o exemplo do sucesso, para eles qualquer coisa de transcendente, a respeitar. "Viste o exemplo do filho do Guerra? Pobre homem! Não sei onde vai ele buscar as forças que o trazem curvado sobre a enxada dia-a-dia! Mas o filho tem-lho sabido merecer, oh se tem. Tomariam vocês, cambada!" Tivessem eles as mesmas oportunidades e como a aldeia seria diferente, a vila, o país. Pobre sistema aquele que trazia enganado na inocência, calado na vergonha, no analfabetismo e na miséria um povo inteiro que, mesmo assim, estava sempre pronto a dar a vida pelo seu país. Era essa revolta que o assaltava cada vez mais, que o empurrava para o abismo onde, sabia, as contradições o haveriam de perder. E ele ali, no meio daquela gente honesta, de mãos cheias de calos e pele curtida pelo sol. Será que merecia aquilo? Agora era a dúvida, a eterna dúvida. Tinha de começar a escrever, talvez ainda hoje, talvez já, naquele momento. Ah, soubesse a imprensa captar aqueles pequenos instantes da vida deste povo, onde não cabe a explicação filosófica, nem ideológica, e talvez a política mudasse.
O pai andava numa roda viva, a receber os parabéns de todos. "É ti Guerra, venha cá um abraço home! Então que tristeza é essa? Hoje é dia de festa, raios! Vamos é beber um copo, que vossemecê bem o merece". E o pai a todos acudia, esboçando aquele raro sorriso, meio infantil, meio triste, que por vezes lhe compunha a face. Era assim; reservado, pouco de festas — um pouco como ele —, mas sempre disposto a dar o braço por quem lho pedisse, a rir na primeira graça, quase ingenuamente. A aldeia ali estava a retribuir-lhe tantos e tantos favores. Fora o primeiro a ter junta de bois, e o primeiro a ter tractor, ainda isso era coisa de ricos. Quantos fretes sem receber, quantas viagens perdidas. Mas ele gostava daquela gente, sobretudo acreditava que um dia tudo aquilo havia de mudar. Coitado, já lá vão quase setenta e, afinal, nem a velha ladeira da fonte ainda foi empedrada, tornando os Invernos o mesmo inferno para os tractores que e para os bois. "Nós vamos a Lisboa se for preciso", dizia ao presidente. Mas este, sem disfarçar o ar de comprometido, lá ia dizendo que brevemente aquilo havia de vir, era uma questão de dinheiros de Lisboa e de orçamentos na Câmara. Pois sim, tal como os automóveis novos que ano após ano desfilavam nas ruas da vila pelas mãos dos donos do poder. E já lá iam quase setenta! A mãe, essa continuava na mesma. Sempre aquela recordação de tanto cuidado (chegava a irritá-lo) preparando-lhe carinhosamente a maleta com a roupa, embrulhando-lhe os chouriços, o bocado de presunto e o queijo. "Olha que tu alimenta-te. Uma pessoa que puxa pela cabeça como tu precisa de muito alimento". • António Oliveira

IV
17 de Março de 1990

Demasiado possessiva, como só as mães sabem ser, tia Juliana — a ti Juliana do ti Guerra — exercia um poder muito especial sobre ele. Hoje, nos vinte e cinco, sentia uma espécie de sombra da mãe em cada nada do dia a dia, em cada pensamento, uma quase dependência adulta eternamente infantil, que o perturbava, que deitava por terra o homem feito que os outros insistiam.
Na frente da mãe, sós, sentia-se outra vez criança, e perguntava-se que espécie de força estava por detrás daquele magnetismo, de todo aquele poder quase analfabeto que as cabras da infância lhe recusaram.
O pai, esse, segundo um respeitável senhor austríaco, de barba, matara-o há muito. O professor de psicologia, um velho sábio, de cachimbo, desertor confesso de dois casamentos inúteis, ensinara-lhe isso, definitivamente importante, sem que as pálpebras se desviassem da sua rotina habitual, descidas, para não sei que horizonte e que estranha metafísica, onde aquele anfiteatro de gente inútil não faria, decerto, sentido nunca.
A primeira imagem do pai, no quarto da pensão que já não era, que dividia com o Rui, definitivamente do Porto, esse mesmo que um dia descobrira, por um seu desleixo pouco costumeiro, os projectos literários adiados, talvez falhados, era um velho ansioso, concentrado no arado da distracção do petiz à frente dos bois, enormes, de cabeça baixa e baba nojenta, que gritava vê lá se acordas, abre-me esses olhos, e que olhava o sol que se movia devagar, depressa demais para o pai, que acabava por sumir nos pinheiros com um rasto de sangue feliz no azul que findava.
A taberna, aos domingos, era encontro obrigatório na memória dos doze, treze, catorze anos, com o pai sentado na mesa do costume, a um canto, perdido na sueca e no cigarro que esquecia, até que um cilindro de cinza se lhe perdia na primeira ruga das calcas esquecidas na certeza do cinto. Lembrava-se sobretudo do medo, da falta de coragem em transpor aquela porta que o separava dos matraquilhos, que marcavam golos sem cessar, o Benfica e o Porto, o Porto e o Benfica, onde um pente desdentado substituía, amiúde, os dez tostões do perde-pagas, e fazia o milagre de mais um jogo, sete bolas brancas e mais uma, duas, três, que surgiam sabe-se lá como, de onde, perante a troca breve de olhares cúmplices dos pequenos ladrões de sonhos. Lembrava-se depois dos cinco escudos que o pai tirava da carteira, religiosamente cinco escudos, depois do assado do almoço, da missa do padre João de quem se dizia ter uma amante, que ninguém conhecia, e que esbracejava sermões intermináveis, verdades que ninguém ouvia, distraídos com o dever divino de estar ali, com o assado quem sabe se já queimado no forno da memória. • Ilídio Martins

V
24 de Março de 1990

Eram esses cinco escudos que lhe davam, milagrosamente, para gastar uma tarde de domingo bem passada no café da esquina, no meio dos homens. As contas estavam feitas: dois mil e quinhentos para uma laranjada, dez tostões para o bilhar e o resto para comprar rebuçados de meio tostão para o 'montinho', aquele jogo de pôr as cartas, depois de tirar o trunfo, e onde cada um deles depositava o numero de rebuçados que quisesse, para ganhar ou perder. O Manel, o 'Valete', ia sempre com a 'banca'. Chegava a levar 100 rebuçados para casa! Ele não ia nisso. Uns joguitos e, se desse, tudo bem, abandonava logo ali e ia comendo o resto da tarde e apreciando o jogo dos outros. Se perdesse, era um domingo arruinado: voltava as mesas do café e cravava o olhar perdido naqueles chatos programas de televisão que pareciam não ter fim.
Finalmente a Paula acedeu. Chegava na terça-feira. Raios, às vezes até chegava a detestar-se a si próprio de tanto insistir para se encontrarem. E, afinal, nada deviam um ao outro. Apenas aquela atracção estranha, terrivelmente nova e avassaladora que nenhum sabia explicar. Primeiro tinha dito que não, como sempre. Estar na festa, nem pensar. "É a tua família, a tua gente. Eu não pertenço ali, bem o sabes". De nada lhe valeu o pedido impetrante. Bastava aquele primeiro não para o destroçar., lhe causar um mal-estar e uma sensação de a desconhecer, de distância. Era essa personalidade que o atraía, ou era não sabia o quê que o desconcertava, o tornava inexplicavelmente pequeno, frágil. Nunca lhe conseguira mudar uma decisão dessas. Como, aliás, muito poucas outras. Quantas vezes lhe apetecera dizer não, recusar aqueles telefonemas, os irresistíveis encontros de quinta-feira à tarde, naquele café onde se ouvia Pink Floyd e Doors e se bebia, sofregamente, Sagres preta. Mas nunca o conseguira, tudo isso o seduzia e envolvia, ao ponto de chegar a esperar por aquelas quintas-feiras como um velho espera ansioso pela réstia de sol de Inverno que lhe há-de aquecer os ossos gélidos da vida. Ele, que para os amigos era superior a esses sentimentos menores, incapaz de se prender a uma mulher! Afinal, dissesse-lhe ela que não podia vir nessa semana e o já o dia não tinha a mesma cor, as aulas lhe corriam intermináveis e acéfalas. Ainda se lembrava de como a conhecera. Nos anos do Vítor, o seu melhor amigo. "Quem é aquela miúda que está com a Manuela?". "Não sei, é uma amiga que veio com ela". Nunca mais o seu olhar se desprendeu daquele rosto enigmático, fresco, daqueles cabelos meios cortados meios soltos, dos óculos à John Lennon. Depois foi o redescobrir de uma personalidade infindável, tão diferente, tão perturbante, como um labirinto onde o prazer da procura se renova ao prazer da descoberta.
Dez minutos antes já ele estava na estação. O comboio, colaborante, chegou a hora. "Paula, como é que vais?", disse, resistindo ao abraço. "Carlos, senhor doutor Carlos, meu amigo, como tem passado?". • António Oliveira

VI
31 de Março de 1990

Pronto. Sentiu-se outra vez impotente, desarmado, há procura de sítio onde meter as mãos, ridículo. A voz recusava-se naqueles três segundos vitais, às vezes mais, gesticulava desesperado a reles frase que não saía nunca, e a Paula, com um sorriso quase maternal, perfeito, talvez feliz, recusava desatar aquele nó, de propósito, com um desgraçado qualquer coisa de circunstância, que o salvasse daquele terrível naufrágio, daquele tempo definitivamente parado no tempo.
A mãe esperava há muito conhecê-la. Nunca lhe escondera esse desejo, apesar da insistência de que era apenas uma amiga, uma boa amiga, que ela concordava, com um não é preciso enervares-te, mas que ficava sempre com aquela dúvida, cada vez menor, que também o perseguia. "Não trazes bagagem"? Claro que não trazia bagagem. O esforço não valia a pena nunca. Já devia ter aprendido isso. Os lábios desatavam-se-lhe tarde demais, e saía sempre asneira. A Paula, essa, divertia-se imenso com toda aquela angústia, e via-lhe no rosto esse renovado espanto, essa certeza de que não queria ter a certeza.
Eram pouco mais de nove da manhã. Ele, que detestava levantar-se cedo, que esgotava o tempo milimetricamente disponível naquele quarto de infância, que corria para o dia a dia tarde demais sempre, levantara-se da noite que quase não dormira, sem sono, profundamente acordado no mais fundo de si, para a manhã que finalmente chegara, subitamente real, decididamente importante, como se fosse o último dia que é preciso agarrar com toda a energia disponível que lhe transbordava.
Estava apaixonado. Era isso. Terrivelmente isso no espelho mais demorado que nunca, com a barba quase desfeita, um corte aqui e ali do costume, o cabelo despenteado de sempre. Era isso. Exactamente aquele sentimento pateta que explicara ao Vítor, pouco tempo antes, já com pouca certeza, a cabeça a dizer que sim o coração que não, e que o Vítor concordava, que sim, tal e qual, um sentimento puramente animalesco, primário.
O sol de Junho subia há pouco mais de duas horas. Na rua, dois ou três putos, o ti João que arrastava a bengala rumo à taberna, aquela hora já cheia de moscas, onde o Alberto somava os intermináveis fiados no livro sebento, e a estação ficava lá ao fundo, cada vez mais perto, cada vez mais nítida, onde um relógio encalhara nas três e vinte de um dia em que provavelmente não aconteceu nada, sem história, tal como aquela casa branca parada ao fundo daquela rua eternamente descalça. "Carlos, não me dás um beijo?" • Ilídio Martins

VII
7 de Abril de 1990

— Não há comida como a que a mãe faz. Isto sim, alimenta um homem. Com esta comida e a paz que aqui reina, ficaria a vida inteira na aldeia.
— Não digas isso rapaz, isto não é vida para um homem de estudo. Isto é para mim e para os outros, os analfabetos, que não sabem fazer outra coisa senão fossar, fossar dia-a-dia nesta terra que não dá nada. Vocês são doutra geração, outros tempos, livrem-se, livrem-se disto.
— O pai não compreende que enquanto o pai e os outros pensarem assim não se vai alterar nada? É preciso lutar, mas lutar organizados, não pode ser cada um para seu lado.
A Paula ia ouvindo a conversa e devorando as palavras, que tão bem conhecia. Apetecia-lhe falar, apoiar as ideias do Carlos, dizer ao Ti Guerra que era nele, e em todos os outros como ele, que estava a força capaz de mudar as estruturas podres daquele sistema. A força estava ali, naquele povo simples e propositadamente ignorante, submisso.
— É preciso organizar uma cooperativa, pedir subsídios, ajudas — voltava Carlos.
A mãe, sempre ocupada, limpando, arrumando, não parava um minuto. Não entendia muito bem aquelas conversas, mas tinha medo delas. A sua vida era ali, entre os alguidares e os tachos, chegando lenha à trempe, esquentado o cafezito de cevada pela manhã, preparando o caldo e as batatas para levar aos homens no campo ao meio-dia. Sabia que na aldeia havia mais que falavam assim, sempre no escuro, em surdina, e tinha medo. Ainda se lembrava do filho do Ti Jaquim, "Que Deus lá tenha em descanso" (e persignava-se duas vezes com rapidez). Apareceram na aldeia num automóvel, de fato preto e chapéu. Foram direitinhos a casa dele. Durante semanas ninguém se atreveu a perguntar nada, ninguém soube para onde o levaram. Mesmo depois, quando o trouxeram, magro, olheiras profundas, as pessoas ainda evitaram o seu contacto por alguns dias, receosos da denúncia. Por isso tinha medo daquelas conversas.
— Que pena estes campos não estarem desbravados, emparcelados e a produzir como devia ser. Estas árvores, já do tempo dos meus avós, hão-de morrer de velhas sem que as substituam. E enquanto isso, por ali vão andando os bois e as éguas a lavrar estas nesgas que nos levam o coiro. É aqui que está a riqueza deste país Paula, nesta terra, nesta gente, nestas florestas.
O sol, a pique, lá no alto, inundava a aldeia, deserta, com a sua imensa branquidão, dando à serra um tom pérola matizado de verde e castanho. Na rua, uns cães disputavam um pedaço de toucinho enquanto meia dúzia de galinhas debicavam, incansáveis, o chão por onde o resto da água da fonte ia caindo. Nas escadas que davam para a taberna iam saindo dois homens, boné ensebado na cabeça e "Três Vintes" na boca, acabados de afogar num cálice de aguardente a espera diária da sesta, enquanto se preparando-se para voltar ao monte e pegar de novo na enxada. De repente, o barulho de um motor ecoou pela rua.
— É um carro, não é? — perguntou Carlos. • António Oliveira

VIII
14 de Abril de 1990

Viajavam, sempre que podiam, nas margens da vida, nesses pequenos nadas, e perdiam-se nos corredores da noite até às tantas. Deixavam que os sonhos lhes guiassem as vidas, abandonavam-se no tempo que esqueciam, noite dentro, noite toda, e cantavam a lua nas noites de luar. Tinham pressa de viver depressa, sabiam que vale mais um segundo de luz que o mundo inteiro às escuras. Às vezes eram felizes. Esqueciam-se das mãos, dos ombros, e vagueavam na contramão do mundo real em sonhos quase perfeitos. Esqueciam-se de estar ali, naquele lugar qualquer de estar ali, e descobriam a beleza daquele caminho estúpido, cheio de pedras e de lama, que o ontem da vida lhes negara e o futuro teimava em esquecer. Às vezes eram felizes. Bebiam vinho novo nos umbrais das casas, com homens reais por dentro e reais por fora, estupidamente reais, e diziam poemas que não sabiam, palavras lentas e redondas, e a noite rendia-se devagar àquele pedaço de luz, milésimo, quase eterno, que as memórias não registavam nunca. Esqueciam-se que estavam bêbados de lucidez, e diziam coisas que ninguém ouvia, agora, amanhã, nunca, e riam-se dessa pequena desgraça atrás das pingas grossas de chuva que caiam descompassadamente, mesmo à sua frente, a um palmo das botas desapertadas e sujas que descobriam calçadas por engano. Riam-se outra vez dos pequenos nadas, daqueles pedaços de coisa nenhuma que valiam o acto de nascer, viver e morrer, e rumavam subitamente a lugar nenhum, felizes, esquecidos do corpo e de ser, à espera que o instante quase perpétuo viesse de novo, depressa, mais devagar ainda, e se esquecesse eternamente ali. Às vezes eram felizes. Esqueciam-se da chuva que insistia nas cabeças, e decretavam entrar pela noite dentro, até à raiz, descobrir-lhe o nada e o que o nada tem para que seja esse nada.
O sol entrava pela janela. Aquela cozinha começou a existir finalmente. Uma mesa, um louceiro, três potes gastos na cinza, a Santa Bárbara desbotada num rectângulo de madeira, um rádio de pilhas comprado a prestações há dois ou três anos atrás, o chapéu esquecido e roto do pai no cabide do costume que a mãe pendurava há séculos atrás, quase sempre à mesma hora, e só agora redescobrira a Paula, a seu lado, em silêncio, e viu-lhe no rosto a angústia que também sentia, aquele medo terrível das histórias terríveis, contadas à socapa, de gelar a alma, e quem dera ser criança ainda que a mãe protegia nos braços do mundo.
— É o Luís que chegou da França. Olha, traz um carro novo. Este ano veio mais cedo. Sempre conseguiu vir à festa. — Quem? • Ilídio Martins

IX
21 de Abril de 1990

— O Luís, um emigrante em França. É muito popular na aldeia e por toda a serra, já vais ver porquê.
Uma multidão de miúdos e curiosos cercou o automóvel, um "Gordini" vermelho cor de fogo, carregado de malas e emblemas do Benfica, terços, crucifixos e imagens de Nossa Senhora de Fátima. Mal se imobilizou no meio do largo, uma figura alta, magra, cabelo penteado para trás, abafado do vento por uma laca pirosa cujo cheiro intenso se espalhou rapidamente pelo ar, patilhas até baixo, fato azul marinho, camisa vermelha de enormes, verdes, gravata "amostra de cortinado", cinto de couro com uma fivela donde sobressaía o escudo português, e um lenço branco ao pescoço, saiu do carro. Era ele.
— Granda cadilaque, é sor Vítor! — diziam os putos.
— Isto é que é uma máquina. E novinho em folha. Muita dinheiro faz este gaijo! — comentava o Ti Jaquim pr'ó resto do grupo, enquanto o Vítor, paternalmente, distribuía uns maços de "Gauloises" e uns abraços pela "malta".
— Venha cá um bacalhau daqueles à maneira Ti Ebaristo. E você como vai desse reumatismo Ti Aristides? Olh'o Jaime Cigano?
E todos o olhavam extasiados, como se revissem nele a imagem daquilo que gostariam de ter sido, nos seus trintas e quarentas. Quantos deles o pensaram acompanhar, dar o salto, mas faltava-lhes a coragem no último minuto. A coragem e a meia dúzia de contos de reis.
O sol já começava a tombar lá ao fundo. A calma e o silêncio voltaram à aldeia.
— Carlos, tens escrito alguma coisa? — perguntou a Paula.
— Coisas sem interesse. Nada de importante.
— És sempre o mesmo, começo a julgar que essa modéstia é doentia.
— Não é, bem o sabes. Eu verdadeiramente não gosto daquilo que escrevo. Sou dos que escrevo e rasgo e volto e escrever e a reiventar. Conheces-me.
Escrever para que? Não pretendia ser escritor, embora isso até lhe fizesse jeito. Nem aquela literatura lhe interessava. Para quê retratar-se diária e eternamente em frente duma folha de papel que ninguém iria nunca ler? E depois, a quem interessavam aqueles bocejos intimistas? Olhava hoje a escrita diferente. Tinha posto de parte aqueles poemas de há anos. "Não me identifico neles. Não gosto daquela maneira de escrever. A minha necessidade é agora outra, mas nem eu ta sei explicar". Dantes era a necessidade de afirmação, uma certa vaidade. Hoje é a necessidade de preocupação com as coisas reais, da vida. E esforçava-se por provar a si próprio e aos outros que possuía em si a paixão da verdade. Mas que valor teria essa verdade exposta numa simples folha de papel, tão vulnerável?
— Estamos na era da telefonia, da televisão, da publicidade, do panfleto, da palavra falada, que se faz ouvir em todo o lado. A escrita portuguesa hoje, a verdadeira escrita, é metáfora. O resto, o resto é poesia. • António Oliveira

X
28 de Abril de 1990

— Sabes, estou a atravessar uma fase difícil. Não consigo escrever mais que duas ou três frases. Uma vez ou outra lá faço um poema, mas acabo por perder o entusiasmo com o último verso.
— Não achas que estás a levar isso demasiado a sério?
— Talvez. Sabes, as pessoas às vezes dizem que eu escrevo bem — tu, por exemplo —, e isso dá-me uma certa responsabilidade, uma espécie de coacção que me obriga, pelo menos, a escrever tal como antes. Isso perturba-me. Especialmente porque a minha escrita está sempre a mudar, mais na forma, e não faço ideia o que os outros vão pensar.
— Mas isso perturba-te assim tanto? Estás assim tão preocupado com o que os outros possam pensar do que tu escreves?
— Olha, mentir-te-ia se te dissesse que não. Afinal são os outros, os poucos que conhecem o que escrevo, que me estimulam a continuar. Não sei se acontece com os outros, mas eu não consigo avaliar o que escrevo. Na poesia, por exemplo, tenho muita dificuldade. Sinto-me tão pequeno em tão bons poemas que já li. Sabes, é uma sensação de que é impossível fazer melhor, quando muito repetir de outra forma. E eu não gosto, como sabes, de repetir, nem mesmo o que é meu. E além disso, a opinião dos amigos, se bem que importante, nunca possui a necessária isenção, ou frieza, que realmente me interessa. É uma espécie de beco sem saída, uma inquietação, que me perturba, que me impede de escrever, que me faz pensar demasiado no acto da escrita, na forma, no conteúdo, e que me leva, a grande parte das vezes, a não escrever coisa nenhuma, ou a duas ou três frases que acabam pôr no caixote do lixo.
A tarde escoava-se depressa. Sem darem por isso, o sol sumia-se no horizonte, lá ao fundo, naquela estação de partida, e o caminho tornara-se deserto. As galinhas, estúpidas, abandonavam os seus buracos de terra, mais calmas, e o largo era apenas, naquela tarde de Julho, um choupo velho, quase eterno, onde os velhos, nas tardes de sesta, descansavam as mamarias dos dias de cava, de ceifa, e contavam as sementeiras que tinham sido, há muito, naqueles bancos de pedra.
— És o eterno perfeccionista. É isso. O que não consegues é ser capaz de gostares de ti mesmo, achas os teus defeitos demasiado defeitos. Acho que menosprezas demasiado as tuas capacidades, és humilde de mais. Ou talvez não. Sabias que o excesso de modéstia é uma forma de vaidade?
— Não é isso que estás a pensar de mim, pois não? Não posso acreditar! É mesmo isso que estás a pensar de mim? Diz. Diz-me a verdade. É isso que estás a pensar?
— Não sei. • Ilídio Martins

XI
4 de Maio de 1990

Ficou o resto do dia a pensar naquilo. Nunca lho tinham dito. Assim, tão simples, e tão directo, parecia verdade e ele não gostava dessas verdades. Nunca gostou que duvidassem dos seus sentimentos, e muito menos que lho dissessem. Mas a Paula era diferente. Ainda se sentia meio embaraçado, pouco à vontade as vezes, como se estivesse a esconder algo da sua personalidade. A mãe andava atarefada dum lado para o outro da cozinha, onde parecia já não haver espaço para nada. Em cima da mesa, um cesto com ovos, saídinhos das poderias, um alqueire de farinha branca, açúcar, limões, um alguidar com massa. Ao canto, perto da lareira, donde pendiam uma boa vintena de chouriços, meia dúzia de caçoilas pretas, prontas a ir ao lume, cheia de carne de ovelha, comprada no dia anterior no Ti Augusto, prontas a ir ao forno, já quente no ponto depois de queimar cinco feixes de vides. Ao lume, num tacho sobre a trempe, aquecia-se água para tratar da galinha velha, a sacrificada nestas alturas. Sobre a arca, onde se guardava o milho, secavam os tachos e pratos que, pela milionésima vez, tinham saído do armário da sala para cumprirem a sua obrigação. De lenço preto e cara enfarinhada, suor a pingar-lhe da testa, a mãe ia dando ordens: "É preciso tender o pão. Olha-me esse forno. Cuidado aí com os ovos", e Ti Guerra, de candeia na mão, ia controlando o lume e ouvindo sem resmungar, à espera de limpar o resto da massa do bolo do alguidar. Era sempre assim nas vésperas da festa. Lá estava a broa de milho, a carne assada, os bolos da Páscoa.
A Paula olhava entusiasmada. Tudo aquilo a enternecia e tocava. Sentiu-se contagiada por toda aquela azáfama, que desconhecia do sítio donde vinha. Era simplicidade, o rústico, o bucólico, mas era também a humildade, sinceridade, que a cativava.
Adorava aquela gente, sempre pronta a tudo, com a disposição dos vencedores, sem uma reprovação que fosse.
— Esta noite já temos bolo — disse o Carlos, entrando na pequena cozinha. Deu um beijo na Paula e cumprimentou os pais, bem disposto.
— Estás hoje muito bem disposto — disse-lhe mãe enquanto ia mexendo a massa no alguidar. Estava contente. Não sabia porquê, ele, que detestava as festas e a azáfama das vésperas. Mas tinha acordado bem disposto, cheio de vontade de viver, conversar, estar com a Paula e os pais. • António Oliveira

XII
12 de Maio de 1990

Era o regresso à infância. Ao princípio do princípio. A memória, subitamente clara, mais lúcida, devolveu-lhe os oito, nove, talvez mais. Julho ainda, o sol apertava pelo almoço, comido à pressa, e as tardes de sesta, no banco de pedra, dos velhos, eram duas ou três horas pequenas de fuga ao trabalho e ao mundo.
Era uma tarde qualquer. A festa começava a vestir-se de arcos, paus vermelhos e compridos, e os mordomos, suados, riscavam o ar com os indicadores inchados pela enxada da vida, desdobrando-se em ordens que ninguém ouvia. O cego, imensamente velho, no mesmo banco de pedra, a um canto, talvez há séculos, via passar a vida e as coisas, e o olhar parara-se-lhe no sorriso dos lábios, perfeitos, numa espécie de viagem para sítio nenhum.
Aproximou-se, devagar, pequeno, dedo na boca e olhar tímido, e parou a três passos. O Ti João Ceguinho, à sua frente, subitamente real, existiu finalmente, mais velho ainda, dois ou três cabelos brancos a sobrar do chapéu, preto, sujo, velho, e o mesmo sorriso pareceu-lhe mais parado ainda.
Era uma tarde de sesta. As moscas, ferozes, bebiam o suor dos homens no alto dos postes, à socapa, em voos rasantes, e os grilos, espertos, sumiam-se no fundo das tocas, à espera que o tempo se cumprisse, depressa, e a noite viesse com o luar dos cânticos. Os homens, esquecidos da sesta, desafiavam o tempo, preocupados, cada vez mais suados, e enxotavam as moscas como podiam, por entre um chorrilho de palavrões, enormes, os piores.
O cego perdera-se no tempo. O sorriso, no rosto vazio, tornara-se mais enigmático, perturbante, numa espécie de sensação estranha, impossível de definir. O olhar parecia atravessar os séculos, pensava hoje, e revia-se naquele pedaço de tempo do tamanho de um instante, pequeno, nos calções da infância já quase descalça dos anos de inocência.
A festa era dali a três dias. Dentro de uma caixa, os sapatos novos esperavam a missa de domingo, às onze, à frente do pai, imóvel. Talvez viessem seis padres, falava-se, e o arraial, dizia-se, ia ser o maior de sempre. A três dias das canas nas vinhas, nos pomares, nos batatais, a três dias talvez de uma sova por causa das canas, ou da camisa suja antes da procissão, ou das duas coisas, a mãe fazia o bolo, tal como agora, e a cozinha, outrora mais modesta, repetia-se no ritual dos tachos, dos passe-vites, dos ovos, das colheres de pau que rodavam sem cessar a massa até ao ponto, e o regresso à infância renovou-se no alguidar de barro, à sua frente, também da infância, indicador discreto na anel de massa que a colher de pau esquecia e a memória renovava, agora, ali, na ternura do gesto outra vez inocente. • Ilídio Martins

XIII
19 de Maio de 1990

Os dias corriam devagar na aldeia, mas com o aproximar da festa tudo ganhava nova vida. Uma cor diferente, uma azáfama inusitada que só se repetia três vezes por ano: na romaria da Senhora da Lapa, no domingo da comunhão e na véspera de Natal.
Da janela do seu quarto Carlos olhava o largo onde os homens afinavam os últimos pormenores no coreto, esticavam os fios com as lâmpadas multicores e penduravam as eternas flores de papel pendentes nos fios carretos iguaizinhos aos que a mãe usava para atar as tripas com os chouriços. Um som híbrido, muito agudo, cheio de distorção, saía das duas cornetas presas no cimo da torre da igreja. Era uma daquelas músicas quaisquer dum artista popular de cassete pirata que tinham lugar em todas as festas, levadas pelo Viriato, o 'estúdio ambulante' que estava agora muito em moda nas romarias da zona. A par da música inaudível, umas anedotas brejeiras, uma publicidade a martelo e o anúncio do programa das festas. "... majestosa procissão e salva de 21 tiros... e a noite grandiosa noitada abrilhantada pela categorizada orquestra Os Pavões... arraial com dois, dois grupos ao desafio". Pobres tradições por onde andavam! A Paula tinha razão, o progresso do capitalismo desvirtualizava até aqui, na serra esquecida, onde era mais fácil penetrar a música do Roberto Carlos que os carros do poder central... Sentir o perder das tradições causava-lhe uma tristeza nostálgica a que a Paula chamava romantismo. "És um romântico, meu velho, devias ter vivido na Idade Média", dizia-lhe sempre. "A marcha do progresso é irreversível, e nela algumas dessas tuas ligações terra-a-terra terão de ser sacrificadas". Ele, porém, não o entendia dessa forma. Primeiro havia que dar aquelas populações a liberdade usurpada, os direitos esquecidos, o bem estar que durante décadas lhes tinham negado. Só depois teria lugar esse tipo de progresso.
Limpou outra vez o vidro da janela com a manga da camisa e, por entre a multidão de putos que corriam no largo, atrás dos mordomos da festa que seguiam uma gaita de foles, um tamboril e um bombo tocados por três zés pereiras, distinguiu a figura alta do Luís, de cigarro na boca, cabelo impecavelmente penteado e casaco de fato, rodeado de gente. Adivinhava-lhe as palavras: "Em Lions não falta trabalho. Desenrasco qualquer um".
Voltou à cozinha para chamar a Paula. Apetecia-lhe dar uma volta pela margem do rio, entardecer sem pressas, como antigamente. A mãe já tinha a sopa preparada, e o bacalhau dourado preparava-se para ir ao forno, junto com a chanfana. Em cima da mesa, metade dum queijo da serra abriu-lhe o apetite.
— Esta é uma das nossa grandes riquezas, sabias? — disse para a Paula — Infelizmente, como em quase tudo, não a sabemos aproveitar. Mas sabes que os estrangeiros gostam muito deste nosso queijo? Ali para baixo, para a estrada da vila, é vê-los a comprar aos quilos. E partiu um bocado para si e outro para a Paula, que pôs sobre um naco de broa de milho.
— Anda. Vem daí. Vamos dar uma volta até lá abaixo ao rio. • António Oliveira

XIV
26 de Maio de 1990

Enxadas às costas, os homens, alguns quase bêbados, iam chegando pouco a pouco das manhãs ganhas, cheios de suor e de surro, e paravam nos meios-litros da taberna do Alberto, quase sempre tintos, às vezes duma assentada, e prosseguiam viagem rente as casas, pela sombra, mais descaídos ainda, até aos portos de abrigo do almoço e da sesta.
Os cães, inúmeros, sempre apressados, estendiam as línguas enormes e arfavam, também eles na sombra, olhares atentos nos putos e nos gestos suspeitos das pedras do costume. Os gatos, esses, dormitavam nos tronos dos beirais das janelas, das casas, das gentes, um olho aberto outro fechado, não fosse o diabo tecê-las num qualquer rabo de vassoura e terem que voar, de repente, sem saberem como, e depois corridos pelo primeiro cão até ao alto da cancela, a que estivesse mais à mão, onde os cães, impotentes, desistiam.
— Sabes, acredito profundamente nas tradições da nossa gente. Acho que todo este progresso — para mim falso progresso — não vai contribuir, rigorosamente em nada, para a melhoria da vida do nosso povo. Depois, gosto de rever-me criança, confesso. Talvez pela pureza das coisas, não sei.
— Estás a ver? Estás a ser romântico. Não concordo inteiramente contigo quando dizes que este progresso — que consideras falso progresso — seja inteiramente assim. O progresso, aqui como em qualquer parte, constrói-se, quase sempre, sobre as ruínas do passado. Entendo perfeitamente o que queres dizer, o teu tipo de preocupações, mas o que pretendes é utopia. É impossível travar o progresso e as suas consequências — muitas vezes nefastas, concordo — mas tem também, como sabes, muitos aspectos positivos. Não achas que essa luta é inglória?
— Talvez seja. Olha, o que seria de nós se não acreditássemos em utopias? O que seria de nós se esgotássemos a capacidade de sonhar? Claro que algumas delas não são bem utopias — utopias no sentido de não as considerarmos como tal —, mas sonhos perfeitamente possíveis. Ouve esta música, por exemplo. Estás a ouvir bem o poema, se é que se lhe pode chamar poema? O povo, que tem sempre as costas largas nestes casos, como sabes, quer é coisas alegres, querem dançar e divertir-se. Compreendo perfeitamente e acho saudável. Mas não achas que era possível que este mesmo povo se continuasse a divertir com músicas idênticas a estas mas que não lhes dissesse, pelo menos, asneiras? Não achas que era possível dizer-lhes, na dança e na alegria, qualquer coisa mais?
Sem saber como, a fonte, ali, à sua frente. A Paula dizia qualquer coisa que não ouviu. Vista dali, a aldeia não existia. Apenas um foguete, de súbito, estourou o ar, e a terra quedou-se, outra vez, no silêncio. • Ilídio Martins

XV
2 de Junho de 1990

Era um domingo daqueles que irradiam vida e frescura, inundado de sol e roupas lavadas, caras alegres e boa disposição. Era, afinal, um daqueles domingos que tanto adorava em miúdo, esperado com ansiedade desde o início da semana.
Levantava-se sempre cedo. No sábado à noite até o sono lhe custava a vir, com medo de não acordar de manhã para se juntar ao grupo dos primeiros na corrida às canas. Lembrava-se dos berros da mãe, sempre iguais, e do encolher de ombros do pai, sempre despreocupado. Mal o primeiro morteiro despertava a aldeia, era vê-lo a saltar para a rua, meio café bebido e um bocado do bolo na mão, feito na véspera pela mãe, que não dispensava naquelas viagens matinais. O resto do grupo — o Valete, o Marquês, o Chico, o Sotero e o Sílvio —, não tardava a reunir-se, no largo, lá em cima, perto do Braga, o fogueteiro, donde se via a direcção das canas na sua queda. Ao terceiro já eles corriam campo abaixo como coelhos fugindo a cães em todas as direcções. No fim, um molho de canas, a satisfação dum puto passar orgulhosamente pelo largo de molho as costas — qual missão cumprida —, e, tanta vez, a sova da mãe, menos compreensiva para com estas aventuras. "As mulheres não gostam porque não são capazes de os apanhar".
A missa, seguida de procissão, era ponto obrigatório às nove horas. A igreja enchia-se neste dia, não sabia bem porquê. As pessoas chegavam a aglomerar-se à porta, sem lugar lá dentro, onde os andores — mais de dez —, se encontravam já dispostos e marcados com um lenço da mão pelos rapazes e homens pretendentes ao seu transporte pelos quase dois quilómetros do percurso. Era uma coisa que sempre o inquietara, ver aqueles enormes andores de madeira, pesadões, ao ombro dos homens, cada um com o seu santo, cheios de flores e outros enfeites, alguns com ouro e notas, fotos de soldados e terços. "Fez uma promessa na Guiné. Desde aí a Nossa Senhora é sempre dele. Até à morte". Ou "É o santo dos doentinhos, lembras-te da Maria do Neco, que esteve quase vai-não-vai? E a filha que vai por ela, coitada!".
Acompanhava sempre a procissão. Aproveitava para dar uma espiada no papel do homem do trombone que integrava a banda. Detestava aquelas músicas, mas admirava os meninos que, pouco mais velhos do que ele, já tocavam aqueles pífaros compridos e usavam farda e boné. E até sabiam marchar, a compasso, com o resto. E as velhotas que, de terço na mão, iam acompanhando a ladainha do velho padre, cansado, sempre debaixo do pálio segurado por seis homens que vestiam aquelas capas sem mangas ridículas, sempre a olharem quem estava às janelas, prontas a comentar: "Olha a Auzira com uma blusa nova". "Olha a colcha da Noémia". Nunca chegara bem a perceber o que eram os "irmãos". Só sabia que iam sempre, também, nos funerais, com aqueles paus e bandeiras e outros, tipo candeeiro, cujo era esquisito de pronunciar . Gostava era dos verdes na estrada, que tão bem cheiravam. Adorava calçar aquelas canículas, senti-las a rebentar debaixo da sola do sapato, novo só até ao meio-dia. — A Paula já veio para ir à missa? • António Oliveira

XVI
9 de Junho de 1990

Os padres, em Volkswagens, iam chegando pouco a pouco. Os homens, já no adro, mais sorridentes que o habitual, de fatos, saudavam os amigos como quem já se não via há muito tempo, e convidavam-se, com enormes palmadas nas costas, a tomar um copo lá em casa, lá para o fim da tarde, depois da procissão. As mulheres, essas, já derreadas, muito menos sorridentes, ajeitavam os lenços nas cabeças na corrida para a missa. Os putos, os mais pequenos, de ar lavado, imensamente penteados, desejosos que a missa acabasse antes mesmo de ter começado, eram arrastados a contragosto pelas mães, inevitavelmente atrasadas, com braços gordos e enormes.
— Acho piada isto de tu quereres ir à missa. Afinal, és ou não és ateu?
— Claro que sou. Sabes bem disso. Vou à missa porque não quero sentir-me — perante os outros, especialmente os meus pais — de fora disto tudo, e porque não me parece que daí advenha qualquer mal. Se pretendes pôr em causa ou questionar-me se se trata ou não de uma atitude coerente, digo-te que não há nenhuma incoerência.
— Sinceramente não sei. Afinal, e muito honestamente, julgo que ainda não te libertaste totalmente disso, e isto para utilizar uma expressão que te é particularmente cara e a que recorres com frequência. No fundo, sinto-o, ainda não te libertaste totalmente dessa educação que tu consideras negativa, e eu concordo, e compreendo perfeitamente esse teu dilema.
— Isso não é verdade. Claro que, como deves calcular, levei imenso tempo a libertar-me desse tipo de conceitos, por razões que te são facilmente compreensíveis, mas a verdade é que me sinto totalmente do lado oposto. Repara, não se trata de meras questões formais, de como tudo isso funciona, mas sim da sua essência. Foi difícil, admito-o, porque esta questão é, no mínimo, polémica. De qualquer modo considero-me progressista, e há progressistas, como sabes, que são religiosos, alguns deles até na prática. Portanto, nem sequer é, como vês, uma razão que me preocupa. Preocupa-me, isso sim, é teres essa ideia de mim, talvez resultante da minha incapacidade de te provar claramente que não sou realmente religioso e por razões profundas.
— Talvez. Talvez tenhas razão nisso de nunca me teres convencido realmente de que de facto assim pensas, ou talvez derive — e talvez seja mesmo isso — de eu própria ter sentido, durante um tempo considerável, toda essa revolução interior. De qualquer modo, sabes que adoro provocar este tipo de situações, que até servem como forma de questionar-me a mim mesma, e de saber se realmente continuo a pensar da mesma forma. • Ilídio Martins

XVII
16 de Junho de 1990

— Não sei se alguma vez te disse, mas na minha juventude, naquela idade em que se fazem os grandes planos da nossa vida — tu passaste por isso de certeza —, eu queria ser padre. Palavra. E sabes porquê? Não era por causa da fé, que sempre me faltou, mas sim porque adoraria viver aquele vida celibatária, numa pobre aldeia do interior, longe do bulício das cidades e do progresso, isolado. Pensava que ia ter todo o tempo do mundo para ler e meditar. E depois daria aqueles passeios ao fim do dia pelas encostas da serra, que eu tanto adoro. Nessa altura, ia ler todos os livros do mundo, estudar todos os filósofos. Hoje ando atrasado na leitura que penso nuca mais recuperarei.
— Engraçado, mas isso não me surpreende mesmo nada em ti. És mesmo o tipo de solitário estilo bucólico. Mas padre, Carlos, poupa-me. Que diriam as beatas quando vissem um padre como tu, cabelo grande, sempre barba por fazer, que bebe cerveja?
A procissão tinha já dado a volta à aldeia e os andores principiavam a recolher à igreja. As pessoas dirigiam-se para o largo, onde a banda Nova Amizade se preparava para dar o habitual concerto de domingo. Era assim a festa, nesse dia a igreja não dava autorização para bailar, pelo que a música era de banda.
— Não achas isto estúpido? — perguntou Carlos que caminhava ao lado da Paula em direcção ao largo. — A igreja considera este o dia religioso, pelo que o povo não pode bailar. Instituem mesmo licenças para aquilo que eles consideram a festa pagã, pelas quais cobram dinheiro.
— Carlos, são velhos costumes que estão fortemente enraizados nas sociedades, muito ligada a igreja. A festa é religiosa, como sabes. O complemento pagão é do povo, e serve somente os seus desígnios. Se querem juntar esse divertimento à festa religiosa, acho bem que o façam noutro dia. Afinal o que se venera é a santa, que certamente não desejaria que lhe prestassem homenagens desse tipo. — Penso que o santo, qualquer que seja, gostaria, se cá estivesse, sobretudo de ver o seu povo feliz. E a felicidade, uma parte dela, para esta gente, é a romaria. Não te esqueças que eles precisam desse complemento, até como dádiva muito merecida por um ano de trabalho de sol a sol. A sua alma está tão intimamente ligada à música popular como a religião. Ambas fazem parte de um todo inseparável que molda a mentalidade deste povo, simples, é certo, mas do mais sincero que encontras...
— Lá estás tu a falar do "teu povo" com paixão! Às vezes até parece que nós, os que vivemos na cidade, temos todas as culpas... Quando começas a comparar, perdemos muito. Não te esqueças, porém, que o campo precisa tanto da cidade quanto esta do campo.
— Mas em contrapartida, os impostos que nós daqui pagamos revertem a favor de obras na cidade. Olha para Tornelos, se não fossem os peditórios pela população nem sequer o fontenário estava de pé, as mulheres lavariam à chuva, e este caminho decerto estaria agora com a lama das chuvas da semana passada. Isto para além do outro tipo de esquecimento, esse muito pior. Não me contraries, sabes a minha opinião.
— Sabes uma coisa? Mudemos de assunto. A conversa está demasiado política para um dia de festa. • António Oliveira

XVIII
23 de Junho de 1990

As aldeia inteira acotovelava-se naquele largo de festa. Os mais pequenos, agora soltos dos braços das mães, esquecidos dos pais mais ou menos bêbados, ziguezagueavam em corridas infantis, e tropeçavam amiúde na estática dos mais velhos em pose estática, à espera que a banda se cumprisse. Às vezes, estes últimos, impacientes, distribuíam uns tabefes de respeito, quase sempre ligeiros, mais ou menos distraídos, e os putos, besuntados de comida, esqueciam-se nos segundos imediatos com gritos desmedidos, alheios ao maestro que decretava silêncio.
Pouco tempo antes, os músicos, quase todos velhos, que vinham de aldeias distantes num autocarro a cair de velho onde se lia, num pano enorme e bordado, Banda Nova Amizade, Fundada em 1923, arrumavam os assentos em bancos corridos de madeira, religiosamente por ordem, demasiado devagar para a impaciência do maestro, e começavam por desfazer-se dos casacos azuis a cheirar a suor. De seguida, sopravam instrumentos de lata até ficarem vermelhos, talvez do esforço e do vinho, excepto o homem do bombo que marcava implacavelmente o tempo de estarem ali, de olhos postos no maestro que riscava o ar com a batuta, solene, bem dentro do compasso, em cima de uma mala de madeira vazia de pautas.
As mulheres, finalmente, esqueciam-se do almoço, do enorme montão de louça por lavar, dos filhos mais pequenos, dos maridos, e ensaiavam gargalhadas ruidosas nas confidências da vizinha, decerto picantes, numa alegria subitamente quase infantil. Mais sério, indiferente ao mundo terreno daqueles ignorantes que não havia meio de entenderem a suprema arte da música, o maestro esgrimia um pedaço de pau e suava, não sei se de emoção se do calor, e os músicos aplicavam-se o que podiam aos contrabaixos, aos cornetins e aos trombones. Com intervalos de meia hora, o fogueteiro, sempre o Braga da Ti Aninhas, empurrava para o céu dois ou três morteiros que deixavam no ar um sabor a pólvora e a festa.
A taberna, aquela hora, estava cheia. Cumprido a procissão, os homens rendiam-se aos prazeres do vinho, geralmente aos meios-litros, e o Alberto, a suar, apressava-se o que podia naquele aviar de copos. Pouco habituada a essas coisas, e àquela enorme confusão, a mulher, pachorrenta, sempre de olho em cima nos deves e haveres, aturava os berros do marido e ajudava o que podia nas rodadas de tinto.
O Ti João, no mesmo canto do costume, apoiava-se na bengala de há muitos anos, e acenava sempre que sim a mais um copo. Perguntava a todos quem era aquele e aquele, admirava-se que o João já tivesse um filho quase homem, e queixava-se, sobretudo, do maldito reumatismo que lhe tolhia as pernas. "Ah, como eu estou velho", dizia. • Ilídio Martins

XIX
30 de Junho de 1990

Ao jantar, em casa, reunia-se a família toda e os amigos mais chegados. Vinham os tios dos Banhos, que percorriam 13 quilómetros de bicicleta, por entre pinhais, marinhas e terras semeadas de hortaliças e pedras; os primos da Carregosa, sempre a babarem-se da produção do ano, "a melhor de sempre", e os primos de França, que chegavam sempre à última hora, a arfar de pó, quilómetros e presunção. Castiça aquela família, que à mesa não dispensava o comentário ao futebol do Benfica e do Sporting, às colheitas da batata, da vinha, ao preço cada vez maior dos sulfatos e, tantas vezes, à porcaria da tristeza que era aquele país.
— Em França tenho um 'tevê' que apanha 30 canais — dizia o Licínio, orgulhoso do seu conhecimento técnico-televisivo — Vocês aqui nem televisão têm. Isto é uma miséria.
A mãe, habituada a estas discussões, era o moderador. Só se chateava quando a discussão virava para o futebol. Batia o pé e enervava-se sempre, não tanto pelo barulho que eles faziam todos a falar ao mesmo tempo do Jaime Graça, do Simões, do Zé Carlos e, claro, do "maior", o Eusébio, mas porque nem sequer podia por na mesa os seus preciosos cozinhados, que adorava apreciassem. — O comer não vos tapa a boca — dizia — louvado seja Deus, vocês alimentam-se com futebol.
Mas aquilo fazia já parte dos alegres dias de festa, e jantar em que não se discutisse acerrimamente o penalti que o arbitro roubou ao Águas ou à grande defesa do Zé Henriques, não era jantar. Depois vinha a batata. Aqui o Hilário era o mais experiente, embora o avô pusesse sempre água na fervura. "Que não, que eram todos uns tolos, o que é preciso é cultivar só para comer, para aqueles pançudos de Lisboa subirem o preço, conhecerem também a fome, que nós é que tínhamos a culpa". Os primos, direitos nas suas camisas de seda, a cheirar a patjolies e sabonetes Lux, alheavam-se da conversa: "Em França não é preciso semear nada", dizia o mais novo, de cara baixa, "Temos tudo no supermarcher". "Cala-te palerma", dizia a mãe, "Não vês que alguém teve que semear para ti?!".
Carlos assistia sempre fascinado a estas conversas. Estava ali a mais pura expressão do seu povo que tanto amava. Mas quando a conversa tocava o tio Sidónio e o Manuel, que andavam na guerra no Ultramar, ficava gelado. Via que o rosto da avô se encrespava muito, aparecendo-lhe aquelas rugas na testa que faziam a sua pequena face de criança parecer 10 anos mais velha. O avô, esse, falava com entusiasmo dos aerogramas que recebia todas as semanas. "O Sidónio já me mandou dizer que se calhar para o Natal que vem aparecer a televisão a dar as Boas-Festas. Se nós tivéssemos uma televisão..." • António Oliveira

XX
7 de Julho de 1990

Os medos, cada um com os seus, mais ou menos iguais, regressaram de repente, dois ou três segundos apenas, e comprimiam os rostos de todos. Os olhos paravam-se-lhes fixos, mais abertos que o costume, e aquela cozinha de fim de festa ficava subitamente sombria, em silêncio, dois ou três segundos apenas, enormes, demasiado grandes, e podia adivinhar-se-lhes as memórias paradas em coisas terríveis mais ou menos vivas na memória de todos.
O Licínio quedava-se de súbito com os exageros de França, e o salto pela calada da noite, há 15 anos atrás, regressava-lhe à memória. Três dias sem comer por montes e vales, as lágrimas amargas pelos becos escuros de Espanha, os pés em sangue quase a desistirem, o medo que cada sombra trouxesse um policia, e o terror, sim, o terror das histórias reais de torturas reais em cadeias reais, sabe-se lá quantos dias, quantas noites, quantos meses, quantos anos. Os filhos, o François e o Jean Louis, não teriam que passar por isso, felizmente, muito menos por essa odiosa guerra do Ultramar e por esses dois ou três segundos de Natal de adeus até ao meu regresso. Sem perceberem patavina, os primos, fartos de bolo e de estarem ali, estranhavam aquele silêncio súbito, e nunca haviam de perceber quem em Angola morria gente, que em Moçambique morria gente, que na Guiné morria gente, e jamais entenderiam as histórias do avô sobre aqueles caixões minúsculos que chegam de Moçambique, de Angola, da Guiné, com muitas semanas de atraso, e com uma enorme bandeira verde e vermelha desfraldada nas quatro tábuas rodeadas por um punhado de soldados armados de tiros de salva.
Com a sabedoria do calo dos anos, o avô enganava-se de propósito com o falso entusiasmo dos aerogramas, e esquecia-se o que podia do filho do Ti Jaquim, do filho do Alberto e do mais novo do Ebaristo. O Sidónio e o Manuel eram a repetição dos anos idos e dos anos futuros, a repetição da mesma angústia, da mesma ansiedade, dos mesmos medos. Hoje eles, ontem outros, amanhã ainda outros. Todos do mesmo sangue. Todos para a maldita guerra. Em nome de quê? De quem?
Esquecera-se outra vez. Jurou deixar de lutar contra aquela raiva inútil e ali estava ele de novo com a mão crispada na bengala, por debaixo da mesa, que só a avó adivinhava. A avó, de costas para todos, escondia uma lágrima, e desatou a esfregar o tacho com quanta força tinha.
— Oh mulher, então tu não pões vinho à gente?
A festa regressava lá fora. A banda dava a última arruada antes do concerto. O Braga, do adro da igreja, empurrava mais dois ou três foguetes. A festa regressou lá dentro. • Ilídio Martins

XXI
14 de Julho de 1990

As férias tinham passado como um relâmpago. As uvas estavam já maduras nas videiras, saborosas como de costume, expostas, prontas ao assalto dos bandos da pequenada da aldeia; o pai começara já a lavar o lagar, a olear a prensa e a preparar a velha dorna, que o "amarelo" haveria de carregar, ladeira-acima, ladeira-abaixo, das vinhas para a adega, durante quase quinze dias seguidos. Da rua vinha aquele cheiro inconfundível e penetrante do sarro a escorrer pelas valetas, tingindo de rosa as poucas ervas sobreviventes de um sítio abafado e sem chuvas. Pela estrada, despovoada, só esta ou aquela galinha se mantinha atarefada, de bico no chão, cobiçando o líquido doce e fresco. A sesta roubava a vida à aldeia, e a calmaria das sonecas debaixo das sombras das parreiras — entre um marquês de tinto saidinho da pipa grande, a escorrer espuma e frescura —, contrastava com a agitação das manhãs, com os homens apressados na sua caminhada para o campo.
Da janela do quarto, Carlos admirava essas ultimas réstias de vida e aquele tempo parado que o envolviam numa tristeza absurda. Desviava-se-lhe o pensamento para outro sonho, outro cenário, outra realidade. Sentia dentro de si uma inquietação sem propósito e sem nexo, uma angústia doentia, enquanto ia escrevendo notas no seu velho caderno de apontamentos. Céus, há quanto não pegava naquele caderno! E porque o fazia agora? Tantas vezes se recusara a tocar-lhe, a escrever uma linha sequer, quanto mais a ler o que escrevera. Hoje foi um desejo dentro de si, quase um apelo, que o impeliu para o velho caderno, para aquelas folhas amarelas, gastas do tempo, que ao dos olhos perdidos no fim daquela rua que não levava a sitio nenhum. Revolviam-lhe a memória os acontecimentos dos últimos meses: a conclusão do curso, a festa, aquela nova vivência com os pais, a Paula...
Subiu as escadas devagar, degrau a degrau, sentindo o ranger da madeira debaixo de cada passada. Pareciam-lhe maiores aquelas escadas, e a luz, lá ao cimo, a noite. Que desconcerto lhe avassalava a mente, que instinto lhe dirigia os movimentos, que desejo terrível o movia? Bateu a porta duas vezes, baixinho, como sempre, duas pancadas envergonhadas, tímidas, covardes. Foi a Paula que abriu. Admirada, um repente atirou-lhe os braços em volta do pescoço, e as suas bocas colaram-se num longo beijo doido de espasmos e encanto, numa apoteose imensa. Carlos pegou-lhe ao colo e levou-a para o quarto. As roupas, poucas, saltaram precocemente e os corpos iludiram-se na distância e no tempo, unindo-se num turbilhão de encontros há tanto adiado. Carlos perdeu-se naquele corpo de Iris, naqueles seios brancos de Vénus, acalmou-se naquela boca de quimeras doces e amou, amou perdidamente, como os poetas. Deitados sobre a cama, observavam em silêncio o fumo louco a esvaír-se até ao tecto, ido daquele cigarro "Kart" que repartiam.
— Carlos, tenho uma coisa para te dizer.
— Sou todo ouvidos.
— Estou grávida. • António Oliveira

XXII
21 de Julho de 1990

Os cadernos, inúmeros, estavam no sítio do costume. Pelo meio, guardanapos de papel da espessura de mortalhas, perfeitamente ao acaso, contavam histórias e versos que nunca soube de cor, pequenos pedaços de tédio nos cafés de fim de tarde, às vezes antes, e folhas, muitas folhas brancas e de origem incerta, duvidosa até. A sua vida era aquele amontoado de papéis, dois ou três anos de prosa e de versos, religiosamente datados, alguns pedaços de loucura também que escorreu sem saber como para a certeza do papel. O mistério da vida e da morte permanecia em aberto numa prosa por findar, num quase poema que a noite decerto recusou, num simples pedaço de papel datado, sim, datado e sem mais nada. Desfolhou ao acaso uma sebenta antiga que a memória esquecera, duas ou três páginas ao acaso. "As casas são matematicamente brancas e verticais. Cospem excrementos vermelhos desbotados das portas para a cor incerta dos passeios quase cinzentos e desfeitos, monstros de carne e de pasta enforcados em lenços de palhaço rico. Os ponteiros quedaram-se na certeza da física. O mundo está entalado e em pânico na recusa subterrânea do metro esgotado entre nada e coisa nenhuma, o ciclo da terra cumpre-se num relâmpago, na molécula última do universo".
— Estás a ouvir? Eu disse que estou grávida.
A literatura são dois ou três versos escritos às vezes por acaso, sem grandes preocupações estéticas e metafísicas, duas ou três frases simples despreocupadamente ditas em momentos de tédio. Sabia isso. Sabia-o há muito por experiência própria, pelas obras geniais que planeara e falhara, pela escrita sem entusiasmo às vezes feliz. A arte, a verdadeira arte, nasce do abandono de ser, quando o artista se transforma num instrumento mediático entre o que é e o que não sonha ser. Acreditava profundamente nisso. Jamais se esqueceria dos versos escorridos por acaso, sem entusiasmo, que acabavam num quase deslumbramento, e onde por vezes não se reconhecia.
— Acorda. Estás a ouvir o que te estou a dizer?
Dois cães ladravam-se lá para os fundos. Pelo silêncio, quieto, podia perfeitamente ser noite. A noite primeira de todas as noites. A ansiedade crescia-lhe tremendamente depressa, sentia-o. O peito apertava-se-lhe, devagar primeiro, até ao sufoco depois, e galopava possesso e lúcido até ao impossível, quase a explodir num verso do tamanho do universo. Os olhos, dois alfinetes minúsculos, perdiam-se subitamente em horizontes insuspeitos, e o verso, esse, vencido, escapava-se-lhe no sorriso das mãos, quase visível, decerto feliz. • Ilídio Martins

Não Sei Porque Fui Dos Escolhidos Para Viver e Outros Foram Escolhidos Para Morrer - Joe Salgado, vice-presidente do Lar dos Leões de New Jersey, estava nas Twin Towers no fatídico dia 11 de Setembro.

Saramago e Eu - Crónica integrada num 'dossier' a propósito do Nobel da Literatura a José Saramago.

Português Desceu o Rio Amazonas - Entrevista com o autor do livro "Da Nascente à Foz do Amazonas - Uma viagem Fantástica". Alfredo Nascimento, o autor, fala do livro e das experiências únicas que viveu desde as montanhas geladas do Perú até ao Brasil.

Algumas Considerações Sobre os Emigrantes Portugueses em New Jersey - Oito questões acerca dos portugueses em New Jersey.

Pregar no Deserto - Os portugueses de New Jersey.

Imigrantes Lusos São Portugueses de Primeira - Crónica acerca dos direitos e deveres dos imigrantes portugueses nos Estados Unidos publicada sob o pseudónimo de José M. Costa.

Dulce Pontes Encheu o Prudential Hall e Encerrou da Melhor Maneira Programa Português no N.J.P.A.C. - Dulce Pontes mostrou trabalho de grande qualidade e encantou milhares de portugueses.

Sons da Lusofonia Deram Música de Primeiríssimo Plano no N.J.P.A.C. - Mais um concerto memorável no New Jersey Performing Arts Center. Crónica acerca do que vi e ouvi.

Pedro Abrunhosa Mostrou que é Um Mestre na Arte da Sedução - Abrunhosa e os Bandemónio "mandaram abaixo" a sala do NJPAC. Mas a mim não me convenceram. Crónica de mal-dizer.

O Sentido da Diferença - Crónica a propósito da recandidatura de Mário Soares à Presidência da República.

O. J. Simpson: O Julgamento do Século - O julgamento mais mediático de sempre visto pouco tempo antes de ser conhecido o veredicto.

Maria João e Mário Laginha no N.J.P.A.C.: Duo Português Deu Lição de Bom Gosto e Humildade - Duo português regressou ao New Jersey Performing Arts Center (New Jersey, EUA)  para mais um excelente concerto.

Um "Santo de Carne e Osso" - Crónica a propósito da visita a New Jersey do Padre Caetano, que se auto-intitula "santo de carne e osso". Uma visita a uma das suas "homilias" e uma consulta em privado.

Ex-Toxicodependente Fala das Drogas e de Como Se Livrou Delas - Entrevista com um ex-toxicodependente de drogas duras. A experiência da droga e a receita da cura.

Portugueses Deram a Volta aos E.U.A. em 15 Dias - A aventura de oito motociclistas portugueses e luso-americanos que percorreram os Estados Unidos de mota.

Ballet Gulbenkian Mostrou Trabalho de Altíssimo Nível no Victoria Theater - A Gulbenkian mostrou um corpo de bailarinos de altíssimo nível. Mais um pé de dança.

Maria João e Mário Laginha: O Excelente Concerto Que os Portugueses Não Viram - O duo português realizou uma performance notável no New Jersey Performing Arts Center. Numa noite em que Betty Carter foi cabeça de cartaz.

Madredeus Surpreende, Cesária Confirma - Grupo de Pedro Ayres Magalhães arrisca concerto com repertório praticamente desconhecido. Cesária confirma o que se esperava.

Olga Roriz Mostrou no Victoria Theater Universo Muito Próprio - A Olga Roriz Companhia de Dança mostrou em New Jersey um belíssimo trabalho. Crónica de uma sedução.

Desencontros - História escrita a duas mãos publicada em 22 fascículos.

Polémica Com Barroso da Fonte - Textos de uma polémica com Barroso da Fonte publicados no Semanário Transmontano.