DESENCONTROS
©
Ilídio Martins/António Oliveira - Luso-Americano
A
história de uma história
A
história que se segue resultou de um processo de elaboração
pouco corrente, talvez inovador. Foi escrita alternadamente por
duas pessoas, propositadamente sem qualquer planificação
prévia, e vale a pena contar a forma como foi construída. O
primeiro dos dois autores começou a contar uma determinada
história. Uma semana depois, foi a vez do segundo dar
continuidade a essa mesma história, levando-a, obviamente, para
um campo insuspeitado pelo primeiro. A vez deste regressou
imediatamente a seguir, e na semana seguinte coube a vez de novo
ao segundo. E assim por aí adiante. Como facilmente se depreende,
tratou-se de um desafio à imaginação de cada um, uma espécie
de jogo, onde o escasso tempo disponível (uma semana) de ambos
constituiu um factor de risco adicional. Riscos correu também o
ilustrador dos fascículos, Luís Areias, que teve que cumprir a
parte que lhe coube num curtíssimo espaço de tempo e cujas
ilustrações lamentavelmente não possuimos para aqui podermos
reproduzir. Pronto. Aqui fica a história da história. Não para
que sirva de desculpa para as falhas cometidas, mas porque nos
parece interessante divulgar a ideia. Permite, também,
obviamente, observar o projecto de um outro ângulo. Resta
acrescentar que esta história, publicada no bissemanário
Luso-Americano, foi escrita sob os pseudónimos de Carlos Reis e
Matos Guerra.
I
24 de Fevereiro de 1990
Em
toda a aldeia não havia quem o não conhecesse, e estimasse,
muito embora ali viesse cada vez menos. Quase só nos períodos de
férias, muito escassas, e no Verão um mesito. O curso, em
Lisboa, levava-lhe todo o tempo. Não que ele não gostasse da
aldeia, e da vida rural. Gostava e até muito. Não se cansava de
o repetir aos seus colegas de Faculdade, pobres citadinos, os
pseudo-burgueses que só conheciam os campos pelos filmes antigos,
a preto e branco, e do bucolismo duma ou doutra obra portuguesa do
tempo do liceu. Como ele detestava aquela minoria parasita, que
olhava os pobres aldeãos do alto da sua arrogância torpe e
desactualizada. Mas Lisboa era, e é, ainda hoje, a imagem desse
poder, duma certa civilização e verdade, mesmo que essa verdade
não passe de uma verdade comprada e descolorida. Tal como o
próprio poder que ainda teima em a suster. Lisboa era, acima de
tudo, para ele, a vulgaridade e a vaidade, pretensamente chique,
exibicionista. Ainda se lembrava das palavras do avô tal como se
fosse hoje. E já tinham passado sete anos (Como o tempo se
consome naquela terra!) "Prepara-te para receber na cara o
desprezo, a barriga cheia e os arrotos desses tipos da cidade. Mas
tu és dos nossos, não torças, Carlos". Raios o partissem
se havia de quebrar, pensou nessa altura. E no entanto, quantas
vezes não pensou em deixar tudo e regressar a casa, à aldeia, à
família, ao convívio de toda aquela gente que de seu só tinha
os braços para trabalhar e a honestidade casta, quase fora de
moda.
Se não fosse a Paula decerto não estaria ali hoje, vestido de
fato da 'comunhão' — ele que detestava fatos — no meio de
todos os que o foram esperar à estação de braços abertos.
"Viva o nosso dotor", gritavam. Chegou a ter vergonha,
que ele não era disso. O pai dissera-lhe que o dinheiro se havia
de arranjar, mas ele tinha-o avisado: "Não quero festa.
Basta-me a satisfação de ter acabado o curso e de vos ter a
vocês e aos avós junto de mim". Mas quem podia ter parado o
povo da aldeia? "Então podia lá ser, isso é que era bom,
pela primeira vez Tornelos ia ter um "dotor" e não
havia festa?" Festa e da rija, que este povo quando toca a
defender os seus não olha a despesas. E foi mesmo, ali estavam
todos, com flores, bem vestidos, até música e foguetes tinham. E
agora ali, a olhá-los e a pensar quantos poderiam ser hoje como
ele, ter um curso, uma profissão, vencer a dependência e sair
daquela terra que lhes comia a carne até à alma. E alguns deles
bem que o mereciam, talvez até mais do que ele, talvez dessem
melhores médicos, melhores engenheiros, melhores professores,
melhores juízes que aquela pequena cambada de instalados que
diariamente roçava as capas pelos bancos da Faculdade. • António
Oliveira
II
3 de Março de 1990
A
revolta, naquele momento de paz, inquietou-se-lhe no rosto. E
cresceu na sua força de transformar o mundo, jurou assumir-se
até ao fim, derrubar todos os obstáculos transponíveis ou não.
Era uma espécie de vertigem, uma loucura crescente, um não sei
quê inexplicavelmente belo. Pouco a pouco, o rosto fechou-se-lhe,
e o olhar perdeu-se no cais imenso da estação de uma província
qualquer que não vem no mapa, nos compêndios de geografia das
escolas de Lisboa e na troca dos colegas: "Tornelos?" E
sentiu outra vez um peso no estômago, a revolta do embaraço e da
vergonha que sentiu, e o avô era apenas um velho, quase
impotente, de mãos cruzadas na bengala, pequena, quase roída
pela traça, a ver passar quem passa e a dizer bom dia, boa tarde,
boa noite, e ele ali, indefeso, terrivelmente só, e viu a
sentença do professor, óbvia, demasiado óbvia, e depois outra
vez vergonha de ter sentido vergonha.
— "Passa-se alguma coisa? Alguma coisa que te
preocupa?"
E a memória devolveu-lhe o terror do primeiro dia, enfiado no
comboio de domingo à tarde a tresandar a relato e a militares, a
mãe a despedir-se na estação e a gritar não te esqueças de
escrever até ficar reduzida a um ponto minúsculo e branco lá
longe, mais longe ainda, até perder de vista a casa pequena
incrivelmente branca do homem gordo e baixo e de chapéu branco e
preto que minutos antes assobiara num pedaço de cobre redondo e
pequeno a sua autoridade renovada. "Não estás contente por
teres vindo?" E apetecia-lhe agora escrever, desesperadamente
agora antes que o verbo se recusasse, e seriam coisas geniais a
registar para sempre na conta-corrente dos dias menos fúteis que
a memória não esquece, e seria agora que iria começar a
escrever o livro que tantas vezes tentara e tantas vezes
desistira, quase aterrorizado, vencido, impotente, como se o papel
terrivelmente branco e vazio o intimidasse, o obrigasse a escrever
verdades definitivas, frases geniais, e deixaria de ser, quem
sabe, apenas um reles professor de província que a máquina fria
e impessoal dos burocratas de Lisboa colocara nessa enorme
província de Lisboa, num bairro sujo e decrépito e pobre, a
tresandar a mijo e a pedintes que nasceram pedintes.
— "O que e que se passa contigo. Estás doente? Tens a
certeza que estás bem? Olha p'ra mim. Passa-se alguma
coisa?"
E viu, naquele instante, vinda de muito longe, de não sei que
memória, uma voz quente e nostálgica de esperança: "Quem
canta por conta sua/ canta sempre com razão,/ mais vale ser
pardal da rua/ que rouxinol na prisão". E viu outra vez a
mãe, o pai, os irmãos, a tia Deolinda que o pôs no mundo, o
padre João que ficava encarnado sempre que alguém falava de
mulheres, a aldeia inteira ali à sua espera. "Não. Não se
passa nada ". • Ilídio Martins
III
10 de Março de 1990
A
festa estava animadíssima. Aquele povo tinha posto ali o seu
melhor, o mais sincero de si, pois viam nele, e no seu curso, o
exemplo do sucesso, para eles qualquer coisa de transcendente, a
respeitar. "Viste o exemplo do filho do Guerra? Pobre homem!
Não sei onde vai ele buscar as forças que o trazem curvado sobre
a enxada dia-a-dia! Mas o filho tem-lho sabido merecer, oh se tem.
Tomariam vocês, cambada!" Tivessem eles as mesmas
oportunidades e como a aldeia seria diferente, a vila, o país.
Pobre sistema aquele que trazia enganado na inocência, calado na
vergonha, no analfabetismo e na miséria um povo inteiro que,
mesmo assim, estava sempre pronto a dar a vida pelo seu país. Era
essa revolta que o assaltava cada vez mais, que o empurrava para o
abismo onde, sabia, as contradições o haveriam de perder. E ele
ali, no meio daquela gente honesta, de mãos cheias de calos e
pele curtida pelo sol. Será que merecia aquilo? Agora era a
dúvida, a eterna dúvida. Tinha de começar a escrever, talvez
ainda hoje, talvez já, naquele momento. Ah, soubesse a imprensa
captar aqueles pequenos instantes da vida deste povo, onde não
cabe a explicação filosófica, nem ideológica, e talvez a
política mudasse.
O pai andava numa roda viva, a receber os parabéns de todos.
"É ti Guerra, venha cá um abraço home! Então que tristeza
é essa? Hoje é dia de festa, raios! Vamos é beber um copo, que
vossemecê bem o merece". E o pai a todos acudia, esboçando
aquele raro sorriso, meio infantil, meio triste, que por vezes lhe
compunha a face. Era assim; reservado, pouco de festas — um
pouco como ele —, mas sempre disposto a dar o braço por quem
lho pedisse, a rir na primeira graça, quase ingenuamente. A
aldeia ali estava a retribuir-lhe tantos e tantos favores. Fora o
primeiro a ter junta de bois, e o primeiro a ter tractor, ainda
isso era coisa de ricos. Quantos fretes sem receber, quantas
viagens perdidas. Mas ele gostava daquela gente, sobretudo
acreditava que um dia tudo aquilo havia de mudar. Coitado, já lá
vão quase setenta e, afinal, nem a velha ladeira da fonte ainda
foi empedrada, tornando os Invernos o mesmo inferno para os
tractores que e para os bois. "Nós vamos a Lisboa se for
preciso", dizia ao presidente. Mas este, sem disfarçar o ar
de comprometido, lá ia dizendo que brevemente aquilo havia de
vir, era uma questão de dinheiros de Lisboa e de orçamentos na
Câmara. Pois sim, tal como os automóveis novos que ano após ano
desfilavam nas ruas da vila pelas mãos dos donos do poder. E já
lá iam quase setenta! A mãe, essa continuava na mesma. Sempre
aquela recordação de tanto cuidado (chegava a irritá-lo)
preparando-lhe carinhosamente a maleta com a roupa,
embrulhando-lhe os chouriços, o bocado de presunto e o queijo.
"Olha que tu alimenta-te. Uma pessoa que puxa pela cabeça
como tu precisa de muito alimento". • António Oliveira
IV
17 de Março de 1990
Demasiado
possessiva, como só as mães sabem ser, tia Juliana — a ti
Juliana do ti Guerra — exercia um poder muito especial sobre
ele. Hoje, nos vinte e cinco, sentia uma espécie de sombra da
mãe em cada nada do dia a dia, em cada pensamento, uma quase
dependência adulta eternamente infantil, que o perturbava, que
deitava por terra o homem feito que os outros insistiam.
Na frente da mãe, sós, sentia-se outra vez criança, e
perguntava-se que espécie de força estava por detrás daquele
magnetismo, de todo aquele poder quase analfabeto que as cabras da
infância lhe recusaram.
O pai, esse, segundo um respeitável senhor austríaco, de barba,
matara-o há muito. O professor de psicologia, um velho sábio, de
cachimbo, desertor confesso de dois casamentos inúteis,
ensinara-lhe isso, definitivamente importante, sem que as
pálpebras se desviassem da sua rotina habitual, descidas, para
não sei que horizonte e que estranha metafísica, onde aquele
anfiteatro de gente inútil não faria, decerto, sentido nunca.
A primeira imagem do pai, no quarto da pensão que já não era,
que dividia com o Rui, definitivamente do Porto, esse mesmo que um
dia descobrira, por um seu desleixo pouco costumeiro, os projectos
literários adiados, talvez falhados, era um velho ansioso,
concentrado no arado da distracção do petiz à frente dos bois,
enormes, de cabeça baixa e baba nojenta, que gritava vê lá se
acordas, abre-me esses olhos, e que olhava o sol que se movia
devagar, depressa demais para o pai, que acabava por sumir nos
pinheiros com um rasto de sangue feliz no azul que findava.
A taberna, aos domingos, era encontro obrigatório na memória dos
doze, treze, catorze anos, com o pai sentado na mesa do costume, a
um canto, perdido na sueca e no cigarro que esquecia, até que um
cilindro de cinza se lhe perdia na primeira ruga das calcas
esquecidas na certeza do cinto. Lembrava-se sobretudo do medo, da
falta de coragem em transpor aquela porta que o separava dos
matraquilhos, que marcavam golos sem cessar, o Benfica e o Porto,
o Porto e o Benfica, onde um pente desdentado substituía,
amiúde, os dez tostões do perde-pagas, e fazia o milagre de mais
um jogo, sete bolas brancas e mais uma, duas, três, que surgiam
sabe-se lá como, de onde, perante a troca breve de olhares
cúmplices dos pequenos ladrões de sonhos. Lembrava-se depois dos
cinco escudos que o pai tirava da carteira, religiosamente cinco
escudos, depois do assado do almoço, da missa do padre João de
quem se dizia ter uma amante, que ninguém conhecia, e que
esbracejava sermões intermináveis, verdades que ninguém ouvia,
distraídos com o dever divino de estar ali, com o assado quem
sabe se já queimado no forno da memória. • Ilídio Martins
V
24 de Março de 1990
Eram
esses cinco escudos que lhe davam, milagrosamente, para gastar uma
tarde de domingo bem passada no café da esquina, no meio dos
homens. As contas estavam feitas: dois mil e quinhentos para uma
laranjada, dez tostões para o bilhar e o resto para comprar
rebuçados de meio tostão para o 'montinho', aquele jogo de pôr
as cartas, depois de tirar o trunfo, e onde cada um deles
depositava o numero de rebuçados que quisesse, para ganhar ou
perder. O Manel, o 'Valete', ia sempre com a 'banca'. Chegava a
levar 100 rebuçados para casa! Ele não ia nisso. Uns joguitos e,
se desse, tudo bem, abandonava logo ali e ia comendo o resto da
tarde e apreciando o jogo dos outros. Se perdesse, era um domingo
arruinado: voltava as mesas do café e cravava o olhar perdido
naqueles chatos programas de televisão que pareciam não ter fim.
Finalmente a Paula acedeu. Chegava na terça-feira. Raios, às
vezes até chegava a detestar-se a si próprio de tanto insistir
para se encontrarem. E, afinal, nada deviam um ao outro. Apenas
aquela atracção estranha, terrivelmente nova e avassaladora que
nenhum sabia explicar. Primeiro tinha dito que não, como sempre.
Estar na festa, nem pensar. "É a tua família, a tua gente.
Eu não pertenço ali, bem o sabes". De nada lhe valeu o
pedido impetrante. Bastava aquele primeiro não para o
destroçar., lhe causar um mal-estar e uma sensação de a
desconhecer, de distância. Era essa personalidade que o atraía,
ou era não sabia o quê que o desconcertava, o tornava
inexplicavelmente pequeno, frágil. Nunca lhe conseguira mudar uma
decisão dessas. Como, aliás, muito poucas outras. Quantas vezes
lhe apetecera dizer não, recusar aqueles telefonemas, os
irresistíveis encontros de quinta-feira à tarde, naquele café
onde se ouvia Pink Floyd e Doors e se bebia, sofregamente, Sagres
preta. Mas nunca o conseguira, tudo isso o seduzia e envolvia, ao
ponto de chegar a esperar por aquelas quintas-feiras como um velho
espera ansioso pela réstia de sol de Inverno que lhe há-de
aquecer os ossos gélidos da vida. Ele, que para os amigos era
superior a esses sentimentos menores, incapaz de se prender a uma
mulher! Afinal, dissesse-lhe ela que não podia vir nessa semana e
o já o dia não tinha a mesma cor, as aulas lhe corriam
intermináveis e acéfalas. Ainda se lembrava de como a conhecera.
Nos anos do Vítor, o seu melhor amigo. "Quem é aquela
miúda que está com a Manuela?". "Não sei, é uma
amiga que veio com ela". Nunca mais o seu olhar se desprendeu
daquele rosto enigmático, fresco, daqueles cabelos meios cortados
meios soltos, dos óculos à John Lennon. Depois foi o redescobrir
de uma personalidade infindável, tão diferente, tão
perturbante, como um labirinto onde o prazer da procura se renova
ao prazer da descoberta.
Dez minutos antes já ele estava na estação. O comboio,
colaborante, chegou a hora. "Paula, como é que vais?",
disse, resistindo ao abraço. "Carlos, senhor doutor Carlos,
meu amigo, como tem passado?". • António Oliveira
VI
31 de Março de 1990
Pronto.
Sentiu-se outra vez impotente, desarmado, há procura de sítio
onde meter as mãos, ridículo. A voz recusava-se naqueles três
segundos vitais, às vezes mais, gesticulava desesperado a reles
frase que não saía nunca, e a Paula, com um sorriso quase
maternal, perfeito, talvez feliz, recusava desatar aquele nó, de
propósito, com um desgraçado qualquer coisa de circunstância,
que o salvasse daquele terrível naufrágio, daquele tempo
definitivamente parado no tempo.
A mãe esperava há muito conhecê-la. Nunca lhe escondera esse
desejo, apesar da insistência de que era apenas uma amiga, uma
boa amiga, que ela concordava, com um não é preciso
enervares-te, mas que ficava sempre com aquela dúvida, cada vez
menor, que também o perseguia. "Não trazes bagagem"?
Claro que não trazia bagagem. O esforço não valia a pena nunca.
Já devia ter aprendido isso. Os lábios desatavam-se-lhe tarde
demais, e saía sempre asneira. A Paula, essa, divertia-se imenso
com toda aquela angústia, e via-lhe no rosto esse renovado
espanto, essa certeza de que não queria ter a certeza.
Eram pouco mais de nove da manhã. Ele, que detestava levantar-se
cedo, que esgotava o tempo milimetricamente disponível naquele
quarto de infância, que corria para o dia a dia tarde demais
sempre, levantara-se da noite que quase não dormira, sem sono,
profundamente acordado no mais fundo de si, para a manhã que
finalmente chegara, subitamente real, decididamente importante,
como se fosse o último dia que é preciso agarrar com toda a
energia disponível que lhe transbordava.
Estava apaixonado. Era isso. Terrivelmente isso no espelho mais
demorado que nunca, com a barba quase desfeita, um corte aqui e
ali do costume, o cabelo despenteado de sempre. Era isso.
Exactamente aquele sentimento pateta que explicara ao Vítor,
pouco tempo antes, já com pouca certeza, a cabeça a dizer que
sim o coração que não, e que o Vítor concordava, que sim, tal
e qual, um sentimento puramente animalesco, primário.
O sol de Junho subia há pouco mais de duas horas. Na rua, dois ou
três putos, o ti João que arrastava a bengala rumo à taberna,
aquela hora já cheia de moscas, onde o Alberto somava os
intermináveis fiados no livro sebento, e a estação ficava lá
ao fundo, cada vez mais perto, cada vez mais nítida, onde um
relógio encalhara nas três e vinte de um dia em que
provavelmente não aconteceu nada, sem história, tal como aquela
casa branca parada ao fundo daquela rua eternamente descalça.
"Carlos, não me dás um beijo?" • Ilídio Martins
VII
7 de Abril de 1990
—
Não há comida como a que a mãe faz. Isto sim, alimenta um
homem. Com esta comida e a paz que aqui reina, ficaria a vida
inteira na aldeia.
— Não digas isso rapaz, isto não é vida para um homem de
estudo. Isto é para mim e para os outros, os analfabetos, que
não sabem fazer outra coisa senão fossar, fossar dia-a-dia nesta
terra que não dá nada. Vocês são doutra geração, outros
tempos, livrem-se, livrem-se disto.
— O pai não compreende que enquanto o pai e os outros pensarem
assim não se vai alterar nada? É preciso lutar, mas lutar
organizados, não pode ser cada um para seu lado.
A Paula ia ouvindo a conversa e devorando as palavras, que tão
bem conhecia. Apetecia-lhe falar, apoiar as ideias do Carlos,
dizer ao Ti Guerra que era nele, e em todos os outros como ele,
que estava a força capaz de mudar as estruturas podres daquele
sistema. A força estava ali, naquele povo simples e
propositadamente ignorante, submisso.
— É preciso organizar uma cooperativa, pedir subsídios, ajudas
— voltava Carlos.
A mãe, sempre ocupada, limpando, arrumando, não parava um
minuto. Não entendia muito bem aquelas conversas, mas tinha medo
delas. A sua vida era ali, entre os alguidares e os tachos,
chegando lenha à trempe, esquentado o cafezito de cevada pela
manhã, preparando o caldo e as batatas para levar aos homens no
campo ao meio-dia. Sabia que na aldeia havia mais que falavam
assim, sempre no escuro, em surdina, e tinha medo. Ainda se
lembrava do filho do Ti Jaquim, "Que Deus lá tenha em
descanso" (e persignava-se duas vezes com rapidez).
Apareceram na aldeia num automóvel, de fato preto e chapéu.
Foram direitinhos a casa dele. Durante semanas ninguém se atreveu
a perguntar nada, ninguém soube para onde o levaram. Mesmo
depois, quando o trouxeram, magro, olheiras profundas, as pessoas
ainda evitaram o seu contacto por alguns dias, receosos da
denúncia. Por isso tinha medo daquelas conversas.
— Que pena estes campos não estarem desbravados, emparcelados e
a produzir como devia ser. Estas árvores, já do tempo dos meus
avós, hão-de morrer de velhas sem que as substituam. E enquanto
isso, por ali vão andando os bois e as éguas a lavrar estas
nesgas que nos levam o coiro. É aqui que está a riqueza deste
país Paula, nesta terra, nesta gente, nestas florestas.
O sol, a pique, lá no alto, inundava a aldeia, deserta, com a sua
imensa branquidão, dando à serra um tom pérola matizado de
verde e castanho. Na rua, uns cães disputavam um pedaço de
toucinho enquanto meia dúzia de galinhas debicavam, incansáveis,
o chão por onde o resto da água da fonte ia caindo. Nas escadas
que davam para a taberna iam saindo dois homens, boné ensebado na
cabeça e "Três Vintes" na boca, acabados de afogar num
cálice de aguardente a espera diária da sesta, enquanto se
preparando-se para voltar ao monte e pegar de novo na enxada. De
repente, o barulho de um motor ecoou pela rua.
— É um carro, não é? — perguntou Carlos. • António
Oliveira
VIII
14 de Abril de 1990
Viajavam,
sempre que podiam, nas margens da vida, nesses pequenos nadas, e
perdiam-se nos corredores da noite até às tantas. Deixavam que
os sonhos lhes guiassem as vidas, abandonavam-se no tempo que
esqueciam, noite dentro, noite toda, e cantavam a lua nas noites
de luar. Tinham pressa de viver depressa, sabiam que vale mais um
segundo de luz que o mundo inteiro às escuras. Às vezes eram
felizes. Esqueciam-se das mãos, dos ombros, e vagueavam na
contramão do mundo real em sonhos quase perfeitos. Esqueciam-se
de estar ali, naquele lugar qualquer de estar ali, e descobriam a
beleza daquele caminho estúpido, cheio de pedras e de lama, que o
ontem da vida lhes negara e o futuro teimava em esquecer. Às
vezes eram felizes. Bebiam vinho novo nos umbrais das casas, com
homens reais por dentro e reais por fora, estupidamente reais, e
diziam poemas que não sabiam, palavras lentas e redondas, e a
noite rendia-se devagar àquele pedaço de luz, milésimo, quase
eterno, que as memórias não registavam nunca. Esqueciam-se que
estavam bêbados de lucidez, e diziam coisas que ninguém ouvia,
agora, amanhã, nunca, e riam-se dessa pequena desgraça atrás
das pingas grossas de chuva que caiam descompassadamente, mesmo à
sua frente, a um palmo das botas desapertadas e sujas que
descobriam calçadas por engano. Riam-se outra vez dos pequenos
nadas, daqueles pedaços de coisa nenhuma que valiam o acto de
nascer, viver e morrer, e rumavam subitamente a lugar nenhum,
felizes, esquecidos do corpo e de ser, à espera que o instante
quase perpétuo viesse de novo, depressa, mais devagar ainda, e se
esquecesse eternamente ali. Às vezes eram felizes. Esqueciam-se
da chuva que insistia nas cabeças, e decretavam entrar pela noite
dentro, até à raiz, descobrir-lhe o nada e o que o nada tem para
que seja esse nada.
O sol entrava pela janela. Aquela cozinha começou a existir
finalmente. Uma mesa, um louceiro, três potes gastos na cinza, a
Santa Bárbara desbotada num rectângulo de madeira, um rádio de
pilhas comprado a prestações há dois ou três anos atrás, o
chapéu esquecido e roto do pai no cabide do costume que a mãe
pendurava há séculos atrás, quase sempre à mesma hora, e só
agora redescobrira a Paula, a seu lado, em silêncio, e viu-lhe no
rosto a angústia que também sentia, aquele medo terrível das
histórias terríveis, contadas à socapa, de gelar a alma, e quem
dera ser criança ainda que a mãe protegia nos braços do mundo.
— É o Luís que chegou da França. Olha, traz um carro novo.
Este ano veio mais cedo. Sempre conseguiu vir à festa. — Quem?
• Ilídio Martins
IX
21 de Abril de 1990
— O
Luís, um emigrante em França. É muito popular na aldeia e por
toda a serra, já vais ver porquê.
Uma multidão de miúdos e curiosos cercou o automóvel, um
"Gordini" vermelho cor de fogo, carregado de malas e
emblemas do Benfica, terços, crucifixos e imagens de Nossa
Senhora de Fátima. Mal se imobilizou no meio do largo, uma figura
alta, magra, cabelo penteado para trás, abafado do vento por uma
laca pirosa cujo cheiro intenso se espalhou rapidamente pelo ar,
patilhas até baixo, fato azul marinho, camisa vermelha de
enormes, verdes, gravata "amostra de cortinado", cinto
de couro com uma fivela donde sobressaía o escudo português, e
um lenço branco ao pescoço, saiu do carro. Era ele.
— Granda cadilaque, é sor Vítor! — diziam os putos.
— Isto é que é uma máquina. E novinho em folha. Muita
dinheiro faz este gaijo! — comentava o Ti Jaquim pr'ó resto do
grupo, enquanto o Vítor, paternalmente, distribuía uns maços de
"Gauloises" e uns abraços pela "malta".
— Venha cá um bacalhau daqueles à maneira Ti Ebaristo. E você
como vai desse reumatismo Ti Aristides? Olh'o Jaime Cigano?
E todos o olhavam extasiados, como se revissem nele a imagem
daquilo que gostariam de ter sido, nos seus trintas e quarentas.
Quantos deles o pensaram acompanhar, dar o salto, mas faltava-lhes
a coragem no último minuto. A coragem e a meia dúzia de contos
de reis.
O sol já começava a tombar lá ao fundo. A calma e o silêncio
voltaram à aldeia.
— Carlos, tens escrito alguma coisa? — perguntou a Paula.
— Coisas sem interesse. Nada de importante.
— És sempre o mesmo, começo a julgar que essa modéstia é
doentia.
— Não é, bem o sabes. Eu verdadeiramente não gosto daquilo
que escrevo. Sou dos que escrevo e rasgo e volto e escrever e a
reiventar. Conheces-me.
Escrever para que? Não pretendia ser escritor, embora isso até
lhe fizesse jeito. Nem aquela literatura lhe interessava. Para
quê retratar-se diária e eternamente em frente duma folha de
papel que ninguém iria nunca ler? E depois, a quem interessavam
aqueles bocejos intimistas? Olhava hoje a escrita diferente. Tinha
posto de parte aqueles poemas de há anos. "Não me
identifico neles. Não gosto daquela maneira de escrever. A minha
necessidade é agora outra, mas nem eu ta sei explicar".
Dantes era a necessidade de afirmação, uma certa vaidade. Hoje
é a necessidade de preocupação com as coisas reais, da vida. E
esforçava-se por provar a si próprio e aos outros que possuía
em si a paixão da verdade. Mas que valor teria essa verdade
exposta numa simples folha de papel, tão vulnerável?
— Estamos na era da telefonia, da televisão, da publicidade, do
panfleto, da palavra falada, que se faz ouvir em todo o lado. A
escrita portuguesa hoje, a verdadeira escrita, é metáfora. O
resto, o resto é poesia. • António Oliveira
X
28 de Abril de 1990
—
Sabes, estou a atravessar uma fase difícil. Não consigo escrever
mais que duas ou três frases. Uma vez ou outra lá faço um
poema, mas acabo por perder o entusiasmo com o último verso.
— Não achas que estás a levar isso demasiado a sério?
— Talvez. Sabes, as pessoas às vezes dizem que eu escrevo bem
— tu, por exemplo —, e isso dá-me uma certa responsabilidade,
uma espécie de coacção que me obriga, pelo menos, a escrever
tal como antes. Isso perturba-me. Especialmente porque a minha
escrita está sempre a mudar, mais na forma, e não faço ideia o
que os outros vão pensar.
— Mas isso perturba-te assim tanto? Estás assim tão preocupado
com o que os outros possam pensar do que tu escreves?
— Olha, mentir-te-ia se te dissesse que não. Afinal são os
outros, os poucos que conhecem o que escrevo, que me estimulam a
continuar. Não sei se acontece com os outros, mas eu não consigo
avaliar o que escrevo. Na poesia, por exemplo, tenho muita
dificuldade. Sinto-me tão pequeno em tão bons poemas que já li.
Sabes, é uma sensação de que é impossível fazer melhor,
quando muito repetir de outra forma. E eu não gosto, como sabes,
de repetir, nem mesmo o que é meu. E além disso, a opinião dos
amigos, se bem que importante, nunca possui a necessária
isenção, ou frieza, que realmente me interessa. É uma espécie
de beco sem saída, uma inquietação, que me perturba, que me
impede de escrever, que me faz pensar demasiado no acto da
escrita, na forma, no conteúdo, e que me leva, a grande parte das
vezes, a não escrever coisa nenhuma, ou a duas ou três frases
que acabam pôr no caixote do lixo.
A tarde escoava-se depressa. Sem darem por isso, o sol sumia-se no
horizonte, lá ao fundo, naquela estação de partida, e o caminho
tornara-se deserto. As galinhas, estúpidas, abandonavam os seus
buracos de terra, mais calmas, e o largo era apenas, naquela tarde
de Julho, um choupo velho, quase eterno, onde os velhos, nas
tardes de sesta, descansavam as mamarias dos dias de cava, de
ceifa, e contavam as sementeiras que tinham sido, há muito,
naqueles bancos de pedra.
— És o eterno perfeccionista. É isso. O que não consegues é
ser capaz de gostares de ti mesmo, achas os teus defeitos
demasiado defeitos. Acho que menosprezas demasiado as tuas
capacidades, és humilde de mais. Ou talvez não. Sabias que o
excesso de modéstia é uma forma de vaidade?
— Não é isso que estás a pensar de mim, pois não? Não posso
acreditar! É mesmo isso que estás a pensar de mim? Diz. Diz-me a
verdade. É isso que estás a pensar?
— Não sei. • Ilídio Martins
XI
4 de Maio de 1990
Ficou
o resto do dia a pensar naquilo. Nunca lho tinham dito. Assim,
tão simples, e tão directo, parecia verdade e ele não gostava
dessas verdades. Nunca gostou que duvidassem dos seus sentimentos,
e muito menos que lho dissessem. Mas a Paula era diferente. Ainda
se sentia meio embaraçado, pouco à vontade as vezes, como se
estivesse a esconder algo da sua personalidade. A mãe andava
atarefada dum lado para o outro da cozinha, onde parecia já não
haver espaço para nada. Em cima da mesa, um cesto com ovos,
saídinhos das poderias, um alqueire de farinha branca, açúcar,
limões, um alguidar com massa. Ao canto, perto da lareira, donde
pendiam uma boa vintena de chouriços, meia dúzia de caçoilas
pretas, prontas a ir ao lume, cheia de carne de ovelha, comprada
no dia anterior no Ti Augusto, prontas a ir ao forno, já quente
no ponto depois de queimar cinco feixes de vides. Ao lume, num
tacho sobre a trempe, aquecia-se água para tratar da galinha
velha, a sacrificada nestas alturas. Sobre a arca, onde se
guardava o milho, secavam os tachos e pratos que, pela
milionésima vez, tinham saído do armário da sala para cumprirem
a sua obrigação. De lenço preto e cara enfarinhada, suor a
pingar-lhe da testa, a mãe ia dando ordens: "É preciso
tender o pão. Olha-me esse forno. Cuidado aí com os ovos",
e Ti Guerra, de candeia na mão, ia controlando o lume e ouvindo
sem resmungar, à espera de limpar o resto da massa do bolo do
alguidar. Era sempre assim nas vésperas da festa. Lá estava a
broa de milho, a carne assada, os bolos da Páscoa.
A Paula olhava entusiasmada. Tudo aquilo a enternecia e tocava.
Sentiu-se contagiada por toda aquela azáfama, que desconhecia do
sítio donde vinha. Era simplicidade, o rústico, o bucólico, mas
era também a humildade, sinceridade, que a cativava.
Adorava aquela gente, sempre pronta a tudo, com a disposição dos
vencedores, sem uma reprovação que fosse.
— Esta noite já temos bolo — disse o Carlos, entrando na
pequena cozinha. Deu um beijo na Paula e cumprimentou os pais, bem
disposto.
— Estás hoje muito bem disposto — disse-lhe mãe enquanto ia
mexendo a massa no alguidar. Estava contente. Não sabia porquê,
ele, que detestava as festas e a azáfama das vésperas. Mas tinha
acordado bem disposto, cheio de vontade de viver, conversar, estar
com a Paula e os pais. • António Oliveira
XII
12 de Maio de 1990
Era o
regresso à infância. Ao princípio do princípio. A memória,
subitamente clara, mais lúcida, devolveu-lhe os oito, nove,
talvez mais. Julho ainda, o sol apertava pelo almoço, comido à
pressa, e as tardes de sesta, no banco de pedra, dos velhos, eram
duas ou três horas pequenas de fuga ao trabalho e ao mundo.
Era uma tarde qualquer. A festa começava a vestir-se de arcos,
paus vermelhos e compridos, e os mordomos, suados, riscavam o ar
com os indicadores inchados pela enxada da vida, desdobrando-se em
ordens que ninguém ouvia. O cego, imensamente velho, no mesmo
banco de pedra, a um canto, talvez há séculos, via passar a vida
e as coisas, e o olhar parara-se-lhe no sorriso dos lábios,
perfeitos, numa espécie de viagem para sítio nenhum.
Aproximou-se, devagar, pequeno, dedo na boca e olhar tímido, e
parou a três passos. O Ti João Ceguinho, à sua frente,
subitamente real, existiu finalmente, mais velho ainda, dois ou
três cabelos brancos a sobrar do chapéu, preto, sujo, velho, e o
mesmo sorriso pareceu-lhe mais parado ainda.
Era uma tarde de sesta. As moscas, ferozes, bebiam o suor dos
homens no alto dos postes, à socapa, em voos rasantes, e os
grilos, espertos, sumiam-se no fundo das tocas, à espera que o
tempo se cumprisse, depressa, e a noite viesse com o luar dos
cânticos. Os homens, esquecidos da sesta, desafiavam o tempo,
preocupados, cada vez mais suados, e enxotavam as moscas como
podiam, por entre um chorrilho de palavrões, enormes, os piores.
O cego perdera-se no tempo. O sorriso, no rosto vazio, tornara-se
mais enigmático, perturbante, numa espécie de sensação
estranha, impossível de definir. O olhar parecia atravessar os
séculos, pensava hoje, e revia-se naquele pedaço de tempo do
tamanho de um instante, pequeno, nos calções da infância já
quase descalça dos anos de inocência.
A festa era dali a três dias. Dentro de uma caixa, os sapatos
novos esperavam a missa de domingo, às onze, à frente do pai,
imóvel. Talvez viessem seis padres, falava-se, e o arraial,
dizia-se, ia ser o maior de sempre. A três dias das canas nas
vinhas, nos pomares, nos batatais, a três dias talvez de uma sova
por causa das canas, ou da camisa suja antes da procissão, ou das
duas coisas, a mãe fazia o bolo, tal como agora, e a cozinha,
outrora mais modesta, repetia-se no ritual dos tachos, dos
passe-vites, dos ovos, das colheres de pau que rodavam sem cessar
a massa até ao ponto, e o regresso à infância renovou-se no
alguidar de barro, à sua frente, também da infância, indicador
discreto na anel de massa que a colher de pau esquecia e a
memória renovava, agora, ali, na ternura do gesto outra vez
inocente. • Ilídio Martins
XIII
19 de Maio de 1990
Os
dias corriam devagar na aldeia, mas com o aproximar da festa tudo
ganhava nova vida. Uma cor diferente, uma azáfama inusitada que
só se repetia três vezes por ano: na romaria da Senhora da Lapa,
no domingo da comunhão e na véspera de Natal.
Da janela do seu quarto Carlos olhava o largo onde os homens
afinavam os últimos pormenores no coreto, esticavam os fios com
as lâmpadas multicores e penduravam as eternas flores de papel
pendentes nos fios carretos iguaizinhos aos que a mãe usava para
atar as tripas com os chouriços. Um som híbrido, muito agudo,
cheio de distorção, saía das duas cornetas presas no cimo da
torre da igreja. Era uma daquelas músicas quaisquer dum artista
popular de cassete pirata que tinham lugar em todas as festas,
levadas pelo Viriato, o 'estúdio ambulante' que estava agora
muito em moda nas romarias da zona. A par da música inaudível,
umas anedotas brejeiras, uma publicidade a martelo e o anúncio do
programa das festas. "... majestosa procissão e salva de 21
tiros... e a noite grandiosa noitada abrilhantada pela
categorizada orquestra Os Pavões... arraial com dois, dois grupos
ao desafio". Pobres tradições por onde andavam! A Paula
tinha razão, o progresso do capitalismo desvirtualizava até
aqui, na serra esquecida, onde era mais fácil penetrar a música
do Roberto Carlos que os carros do poder central... Sentir o
perder das tradições causava-lhe uma tristeza nostálgica a que
a Paula chamava romantismo. "És um romântico, meu velho,
devias ter vivido na Idade Média", dizia-lhe sempre. "A
marcha do progresso é irreversível, e nela algumas dessas tuas
ligações terra-a-terra terão de ser sacrificadas". Ele,
porém, não o entendia dessa forma. Primeiro havia que dar
aquelas populações a liberdade usurpada, os direitos esquecidos,
o bem estar que durante décadas lhes tinham negado. Só depois
teria lugar esse tipo de progresso.
Limpou outra vez o vidro da janela com a manga da camisa e, por
entre a multidão de putos que corriam no largo, atrás dos
mordomos da festa que seguiam uma gaita de foles, um tamboril e um
bombo tocados por três zés pereiras, distinguiu a figura alta do
Luís, de cigarro na boca, cabelo impecavelmente penteado e casaco
de fato, rodeado de gente. Adivinhava-lhe as palavras: "Em
Lions não falta trabalho. Desenrasco qualquer um".
Voltou à cozinha para chamar a Paula. Apetecia-lhe dar uma volta
pela margem do rio, entardecer sem pressas, como antigamente. A
mãe já tinha a sopa preparada, e o bacalhau dourado preparava-se
para ir ao forno, junto com a chanfana. Em cima da mesa, metade
dum queijo da serra abriu-lhe o apetite.
— Esta é uma das nossa grandes riquezas, sabias? — disse para
a Paula — Infelizmente, como em quase tudo, não a sabemos
aproveitar. Mas sabes que os estrangeiros gostam muito deste nosso
queijo? Ali para baixo, para a estrada da vila, é vê-los a
comprar aos quilos. E partiu um bocado para si e outro para a
Paula, que pôs sobre um naco de broa de milho.
— Anda. Vem daí. Vamos dar uma volta até lá abaixo ao rio.
• António Oliveira
XIV
26 de Maio de 1990
Enxadas
às costas, os homens, alguns quase bêbados, iam chegando pouco a
pouco das manhãs ganhas, cheios de suor e de surro, e paravam nos
meios-litros da taberna do Alberto, quase sempre tintos, às vezes
duma assentada, e prosseguiam viagem rente as casas, pela sombra,
mais descaídos ainda, até aos portos de abrigo do almoço e da
sesta.
Os cães, inúmeros, sempre apressados, estendiam as línguas
enormes e arfavam, também eles na sombra, olhares atentos nos
putos e nos gestos suspeitos das pedras do costume. Os gatos,
esses, dormitavam nos tronos dos beirais das janelas, das casas,
das gentes, um olho aberto outro fechado, não fosse o diabo
tecê-las num qualquer rabo de vassoura e terem que voar, de
repente, sem saberem como, e depois corridos pelo primeiro cão
até ao alto da cancela, a que estivesse mais à mão, onde os
cães, impotentes, desistiam.
— Sabes, acredito profundamente nas tradições da nossa gente.
Acho que todo este progresso — para mim falso progresso — não
vai contribuir, rigorosamente em nada, para a melhoria da vida do
nosso povo. Depois, gosto de rever-me criança, confesso. Talvez
pela pureza das coisas, não sei.
— Estás a ver? Estás a ser romântico. Não concordo
inteiramente contigo quando dizes que este progresso — que
consideras falso progresso — seja inteiramente assim. O
progresso, aqui como em qualquer parte, constrói-se, quase
sempre, sobre as ruínas do passado. Entendo perfeitamente o que
queres dizer, o teu tipo de preocupações, mas o que pretendes é
utopia. É impossível travar o progresso e as suas consequências
— muitas vezes nefastas, concordo — mas tem também, como
sabes, muitos aspectos positivos. Não achas que essa luta é
inglória?
— Talvez seja. Olha, o que seria de nós se não acreditássemos
em utopias? O que seria de nós se esgotássemos a capacidade de
sonhar? Claro que algumas delas não são bem utopias — utopias
no sentido de não as considerarmos como tal —, mas sonhos
perfeitamente possíveis. Ouve esta música, por exemplo. Estás a
ouvir bem o poema, se é que se lhe pode chamar poema? O povo, que
tem sempre as costas largas nestes casos, como sabes, quer é
coisas alegres, querem dançar e divertir-se. Compreendo
perfeitamente e acho saudável. Mas não achas que era possível
que este mesmo povo se continuasse a divertir com músicas
idênticas a estas mas que não lhes dissesse, pelo menos,
asneiras? Não achas que era possível dizer-lhes, na dança e na
alegria, qualquer coisa mais?
Sem saber como, a fonte, ali, à sua frente. A Paula dizia
qualquer coisa que não ouviu. Vista dali, a aldeia não existia.
Apenas um foguete, de súbito, estourou o ar, e a terra quedou-se,
outra vez, no silêncio. • Ilídio Martins
XV
2 de Junho de 1990
Era
um domingo daqueles que irradiam vida e frescura, inundado de sol
e roupas lavadas, caras alegres e boa disposição. Era, afinal,
um daqueles domingos que tanto adorava em miúdo, esperado com
ansiedade desde o início da semana.
Levantava-se sempre cedo. No sábado à noite até o sono lhe
custava a vir, com medo de não acordar de manhã para se juntar
ao grupo dos primeiros na corrida às canas. Lembrava-se dos
berros da mãe, sempre iguais, e do encolher de ombros do pai,
sempre despreocupado. Mal o primeiro morteiro despertava a aldeia,
era vê-lo a saltar para a rua, meio café bebido e um bocado do
bolo na mão, feito na véspera pela mãe, que não dispensava
naquelas viagens matinais. O resto do grupo — o Valete, o
Marquês, o Chico, o Sotero e o Sílvio —, não tardava a
reunir-se, no largo, lá em cima, perto do Braga, o fogueteiro,
donde se via a direcção das canas na sua queda. Ao terceiro já
eles corriam campo abaixo como coelhos fugindo a cães em todas as
direcções. No fim, um molho de canas, a satisfação dum puto
passar orgulhosamente pelo largo de molho as costas — qual
missão cumprida —, e, tanta vez, a sova da mãe, menos
compreensiva para com estas aventuras. "As mulheres não
gostam porque não são capazes de os apanhar".
A missa, seguida de procissão, era ponto obrigatório às nove
horas. A igreja enchia-se neste dia, não sabia bem porquê. As
pessoas chegavam a aglomerar-se à porta, sem lugar lá dentro,
onde os andores — mais de dez —, se encontravam já dispostos
e marcados com um lenço da mão pelos rapazes e homens
pretendentes ao seu transporte pelos quase dois quilómetros do
percurso. Era uma coisa que sempre o inquietara, ver aqueles
enormes andores de madeira, pesadões, ao ombro dos homens, cada
um com o seu santo, cheios de flores e outros enfeites, alguns com
ouro e notas, fotos de soldados e terços. "Fez uma promessa
na Guiné. Desde aí a Nossa Senhora é sempre dele. Até à
morte". Ou "É o santo dos doentinhos, lembras-te da
Maria do Neco, que esteve quase vai-não-vai? E a filha que vai
por ela, coitada!".
Acompanhava sempre a procissão. Aproveitava para dar uma espiada
no papel do homem do trombone que integrava a banda. Detestava
aquelas músicas, mas admirava os meninos que, pouco mais velhos
do que ele, já tocavam aqueles pífaros compridos e usavam farda
e boné. E até sabiam marchar, a compasso, com o resto. E as
velhotas que, de terço na mão, iam acompanhando a ladainha do
velho padre, cansado, sempre debaixo do pálio segurado por seis
homens que vestiam aquelas capas sem mangas ridículas, sempre a
olharem quem estava às janelas, prontas a comentar: "Olha a
Auzira com uma blusa nova". "Olha a colcha da
Noémia". Nunca chegara bem a perceber o que eram os
"irmãos". Só sabia que iam sempre, também, nos
funerais, com aqueles paus e bandeiras e outros, tipo candeeiro,
cujo era esquisito de pronunciar . Gostava era dos verdes na
estrada, que tão bem cheiravam. Adorava calçar aquelas
canículas, senti-las a rebentar debaixo da sola do sapato, novo
só até ao meio-dia. — A Paula já veio para ir à missa? • António
Oliveira
XVI
9 de Junho de 1990
Os
padres, em Volkswagens, iam chegando pouco a pouco. Os homens, já
no adro, mais sorridentes que o habitual, de fatos, saudavam os
amigos como quem já se não via há muito tempo, e convidavam-se,
com enormes palmadas nas costas, a tomar um copo lá em casa, lá
para o fim da tarde, depois da procissão. As mulheres, essas, já
derreadas, muito menos sorridentes, ajeitavam os lenços nas
cabeças na corrida para a missa. Os putos, os mais pequenos, de
ar lavado, imensamente penteados, desejosos que a missa acabasse
antes mesmo de ter começado, eram arrastados a contragosto pelas
mães, inevitavelmente atrasadas, com braços gordos e enormes.
— Acho piada isto de tu quereres ir à missa. Afinal, és ou
não és ateu?
— Claro que sou. Sabes bem disso. Vou à missa porque não quero
sentir-me — perante os outros, especialmente os meus pais — de
fora disto tudo, e porque não me parece que daí advenha qualquer
mal. Se pretendes pôr em causa ou questionar-me se se trata ou
não de uma atitude coerente, digo-te que não há nenhuma
incoerência.
— Sinceramente não sei. Afinal, e muito honestamente, julgo que
ainda não te libertaste totalmente disso, e isto para utilizar
uma expressão que te é particularmente cara e a que recorres com
frequência. No fundo, sinto-o, ainda não te libertaste
totalmente dessa educação que tu consideras negativa, e eu
concordo, e compreendo perfeitamente esse teu dilema.
— Isso não é verdade. Claro que, como deves calcular, levei
imenso tempo a libertar-me desse tipo de conceitos, por razões
que te são facilmente compreensíveis, mas a verdade é que me
sinto totalmente do lado oposto. Repara, não se trata de meras
questões formais, de como tudo isso funciona, mas sim da sua
essência. Foi difícil, admito-o, porque esta questão é, no
mínimo, polémica. De qualquer modo considero-me progressista, e
há progressistas, como sabes, que são religiosos, alguns deles
até na prática. Portanto, nem sequer é, como vês, uma razão
que me preocupa. Preocupa-me, isso sim, é teres essa ideia de
mim, talvez resultante da minha incapacidade de te provar
claramente que não sou realmente religioso e por razões
profundas.
— Talvez. Talvez tenhas razão nisso de nunca me teres
convencido realmente de que de facto assim pensas, ou talvez
derive — e talvez seja mesmo isso — de eu própria ter
sentido, durante um tempo considerável, toda essa revolução
interior. De qualquer modo, sabes que adoro provocar este tipo de
situações, que até servem como forma de questionar-me a mim
mesma, e de saber se realmente continuo a pensar da mesma forma.
• Ilídio Martins
XVII
16 de Junho de 1990
—
Não sei se alguma vez te disse, mas na minha juventude, naquela
idade em que se fazem os grandes planos da nossa vida — tu
passaste por isso de certeza —, eu queria ser padre. Palavra. E
sabes porquê? Não era por causa da fé, que sempre me faltou,
mas sim porque adoraria viver aquele vida celibatária, numa pobre
aldeia do interior, longe do bulício das cidades e do progresso,
isolado. Pensava que ia ter todo o tempo do mundo para ler e
meditar. E depois daria aqueles passeios ao fim do dia pelas
encostas da serra, que eu tanto adoro. Nessa altura, ia ler todos
os livros do mundo, estudar todos os filósofos. Hoje ando
atrasado na leitura que penso nuca mais recuperarei.
— Engraçado, mas isso não me surpreende mesmo nada em ti. És
mesmo o tipo de solitário estilo bucólico. Mas padre, Carlos,
poupa-me. Que diriam as beatas quando vissem um padre como tu,
cabelo grande, sempre barba por fazer, que bebe cerveja?
A procissão tinha já dado a volta à aldeia e os andores
principiavam a recolher à igreja. As pessoas dirigiam-se para o
largo, onde a banda Nova Amizade se preparava para dar o habitual
concerto de domingo. Era assim a festa, nesse dia a igreja não
dava autorização para bailar, pelo que a música era de banda.
— Não achas isto estúpido? — perguntou Carlos que caminhava
ao lado da Paula em direcção ao largo. — A igreja considera
este o dia religioso, pelo que o povo não pode bailar. Instituem
mesmo licenças para aquilo que eles consideram a festa pagã,
pelas quais cobram dinheiro.
— Carlos, são velhos costumes que estão fortemente enraizados
nas sociedades, muito ligada a igreja. A festa é religiosa, como
sabes. O complemento pagão é do povo, e serve somente os seus
desígnios. Se querem juntar esse divertimento à festa religiosa,
acho bem que o façam noutro dia. Afinal o que se venera é a
santa, que certamente não desejaria que lhe prestassem homenagens
desse tipo. — Penso que o santo, qualquer que seja, gostaria, se
cá estivesse, sobretudo de ver o seu povo feliz. E a felicidade,
uma parte dela, para esta gente, é a romaria. Não te esqueças
que eles precisam desse complemento, até como dádiva muito
merecida por um ano de trabalho de sol a sol. A sua alma está
tão intimamente ligada à música popular como a religião. Ambas
fazem parte de um todo inseparável que molda a mentalidade deste
povo, simples, é certo, mas do mais sincero que encontras...
— Lá estás tu a falar do "teu povo" com paixão! Às
vezes até parece que nós, os que vivemos na cidade, temos todas
as culpas... Quando começas a comparar, perdemos muito. Não te
esqueças, porém, que o campo precisa tanto da cidade quanto esta
do campo.
— Mas em contrapartida, os impostos que nós daqui pagamos
revertem a favor de obras na cidade. Olha para Tornelos, se não
fossem os peditórios pela população nem sequer o fontenário
estava de pé, as mulheres lavariam à chuva, e este caminho
decerto estaria agora com a lama das chuvas da semana passada.
Isto para além do outro tipo de esquecimento, esse muito pior.
Não me contraries, sabes a minha opinião.
— Sabes uma coisa? Mudemos de assunto. A conversa está
demasiado política para um dia de festa. • António Oliveira
XVIII
23 de Junho de 1990
As
aldeia inteira acotovelava-se naquele largo de festa. Os mais
pequenos, agora soltos dos braços das mães, esquecidos dos pais
mais ou menos bêbados, ziguezagueavam em corridas infantis, e
tropeçavam amiúde na estática dos mais velhos em pose
estática, à espera que a banda se cumprisse. Às vezes, estes
últimos, impacientes, distribuíam uns tabefes de respeito, quase
sempre ligeiros, mais ou menos distraídos, e os putos, besuntados
de comida, esqueciam-se nos segundos imediatos com gritos
desmedidos, alheios ao maestro que decretava silêncio.
Pouco tempo antes, os músicos, quase todos velhos, que vinham de
aldeias distantes num autocarro a cair de velho onde se lia, num
pano enorme e bordado, Banda Nova Amizade, Fundada em 1923,
arrumavam os assentos em bancos corridos de madeira,
religiosamente por ordem, demasiado devagar para a impaciência do
maestro, e começavam por desfazer-se dos casacos azuis a cheirar
a suor. De seguida, sopravam instrumentos de lata até ficarem
vermelhos, talvez do esforço e do vinho, excepto o homem do bombo
que marcava implacavelmente o tempo de estarem ali, de olhos
postos no maestro que riscava o ar com a batuta, solene, bem
dentro do compasso, em cima de uma mala de madeira vazia de
pautas.
As mulheres, finalmente, esqueciam-se do almoço, do enorme
montão de louça por lavar, dos filhos mais pequenos, dos
maridos, e ensaiavam gargalhadas ruidosas nas confidências da
vizinha, decerto picantes, numa alegria subitamente quase
infantil. Mais sério, indiferente ao mundo terreno daqueles
ignorantes que não havia meio de entenderem a suprema arte da
música, o maestro esgrimia um pedaço de pau e suava, não sei se
de emoção se do calor, e os músicos aplicavam-se o que podiam
aos contrabaixos, aos cornetins e aos trombones. Com intervalos de
meia hora, o fogueteiro, sempre o Braga da Ti Aninhas, empurrava
para o céu dois ou três morteiros que deixavam no ar um sabor a
pólvora e a festa.
A taberna, aquela hora, estava cheia. Cumprido a procissão, os
homens rendiam-se aos prazeres do vinho, geralmente aos
meios-litros, e o Alberto, a suar, apressava-se o que podia
naquele aviar de copos. Pouco habituada a essas coisas, e àquela
enorme confusão, a mulher, pachorrenta, sempre de olho em cima
nos deves e haveres, aturava os berros do marido e ajudava o que
podia nas rodadas de tinto.
O Ti João, no mesmo canto do costume, apoiava-se na bengala de
há muitos anos, e acenava sempre que sim a mais um copo.
Perguntava a todos quem era aquele e aquele, admirava-se que o
João já tivesse um filho quase homem, e queixava-se, sobretudo,
do maldito reumatismo que lhe tolhia as pernas. "Ah, como eu
estou velho", dizia. • Ilídio Martins
XIX
30 de Junho de 1990
Ao
jantar, em casa, reunia-se a família toda e os amigos mais
chegados. Vinham os tios dos Banhos, que percorriam 13
quilómetros de bicicleta, por entre pinhais, marinhas e terras
semeadas de hortaliças e pedras; os primos da Carregosa, sempre a
babarem-se da produção do ano, "a melhor de sempre", e
os primos de França, que chegavam sempre à última hora, a arfar
de pó, quilómetros e presunção. Castiça aquela família, que
à mesa não dispensava o comentário ao futebol do Benfica e do
Sporting, às colheitas da batata, da vinha, ao preço cada vez
maior dos sulfatos e, tantas vezes, à porcaria da tristeza que
era aquele país.
— Em França tenho um 'tevê' que apanha 30 canais — dizia o
Licínio, orgulhoso do seu conhecimento técnico-televisivo —
Vocês aqui nem televisão têm. Isto é uma miséria.
A mãe, habituada a estas discussões, era o moderador. Só se
chateava quando a discussão virava para o futebol. Batia o pé e
enervava-se sempre, não tanto pelo barulho que eles faziam todos
a falar ao mesmo tempo do Jaime Graça, do Simões, do Zé Carlos
e, claro, do "maior", o Eusébio, mas porque nem sequer
podia por na mesa os seus preciosos cozinhados, que adorava
apreciassem. — O comer não vos tapa a boca — dizia —
louvado seja Deus, vocês alimentam-se com futebol.
Mas aquilo fazia já parte dos alegres dias de festa, e jantar em
que não se discutisse acerrimamente o penalti que o arbitro
roubou ao Águas ou à grande defesa do Zé Henriques, não era
jantar. Depois vinha a batata. Aqui o Hilário era o mais
experiente, embora o avô pusesse sempre água na fervura.
"Que não, que eram todos uns tolos, o que é preciso é
cultivar só para comer, para aqueles pançudos de Lisboa subirem
o preço, conhecerem também a fome, que nós é que tínhamos a
culpa". Os primos, direitos nas suas camisas de seda, a
cheirar a patjolies e sabonetes Lux, alheavam-se da conversa:
"Em França não é preciso semear nada", dizia o mais
novo, de cara baixa, "Temos tudo no supermarcher".
"Cala-te palerma", dizia a mãe, "Não vês que
alguém teve que semear para ti?!".
Carlos assistia sempre fascinado a estas conversas. Estava ali a
mais pura expressão do seu povo que tanto amava. Mas quando a
conversa tocava o tio Sidónio e o Manuel, que andavam na guerra
no Ultramar, ficava gelado. Via que o rosto da avô se encrespava
muito, aparecendo-lhe aquelas rugas na testa que faziam a sua
pequena face de criança parecer 10 anos mais velha. O avô, esse,
falava com entusiasmo dos aerogramas que recebia todas as semanas.
"O Sidónio já me mandou dizer que se calhar para o Natal
que vem aparecer a televisão a dar as Boas-Festas. Se nós
tivéssemos uma televisão..." • António Oliveira
XX
7 de Julho de 1990
Os
medos, cada um com os seus, mais ou menos iguais, regressaram de
repente, dois ou três segundos apenas, e comprimiam os rostos de
todos. Os olhos paravam-se-lhes fixos, mais abertos que o costume,
e aquela cozinha de fim de festa ficava subitamente sombria, em
silêncio, dois ou três segundos apenas, enormes, demasiado
grandes, e podia adivinhar-se-lhes as memórias paradas em coisas
terríveis mais ou menos vivas na memória de todos.
O Licínio quedava-se de súbito com os exageros de França, e o
salto pela calada da noite, há 15 anos atrás, regressava-lhe à
memória. Três dias sem comer por montes e vales, as lágrimas
amargas pelos becos escuros de Espanha, os pés em sangue quase a
desistirem, o medo que cada sombra trouxesse um policia, e o
terror, sim, o terror das histórias reais de torturas reais em
cadeias reais, sabe-se lá quantos dias, quantas noites, quantos
meses, quantos anos. Os filhos, o François e o Jean Louis, não
teriam que passar por isso, felizmente, muito menos por essa
odiosa guerra do Ultramar e por esses dois ou três segundos de
Natal de adeus até ao meu regresso. Sem perceberem patavina, os
primos, fartos de bolo e de estarem ali, estranhavam aquele
silêncio súbito, e nunca haviam de perceber quem em Angola
morria gente, que em Moçambique morria gente, que na Guiné
morria gente, e jamais entenderiam as histórias do avô sobre
aqueles caixões minúsculos que chegam de Moçambique, de Angola,
da Guiné, com muitas semanas de atraso, e com uma enorme bandeira
verde e vermelha desfraldada nas quatro tábuas rodeadas por um
punhado de soldados armados de tiros de salva.
Com a sabedoria do calo dos anos, o avô enganava-se de propósito
com o falso entusiasmo dos aerogramas, e esquecia-se o que podia
do filho do Ti Jaquim, do filho do Alberto e do mais novo do
Ebaristo. O Sidónio e o Manuel eram a repetição dos anos idos e
dos anos futuros, a repetição da mesma angústia, da mesma
ansiedade, dos mesmos medos. Hoje eles, ontem outros, amanhã
ainda outros. Todos do mesmo sangue. Todos para a maldita guerra.
Em nome de quê? De quem?
Esquecera-se outra vez. Jurou deixar de lutar contra aquela raiva
inútil e ali estava ele de novo com a mão crispada na bengala,
por debaixo da mesa, que só a avó adivinhava. A avó, de costas
para todos, escondia uma lágrima, e desatou a esfregar o tacho
com quanta força tinha.
— Oh mulher, então tu não pões vinho à gente?
A festa regressava lá fora. A banda dava a última arruada antes
do concerto. O Braga, do adro da igreja, empurrava mais dois ou
três foguetes. A festa regressou lá dentro. • Ilídio
Martins
XXI
14 de Julho de 1990
As
férias tinham passado como um relâmpago. As uvas estavam já
maduras nas videiras, saborosas como de costume, expostas, prontas
ao assalto dos bandos da pequenada da aldeia; o pai começara já
a lavar o lagar, a olear a prensa e a preparar a velha dorna, que
o "amarelo" haveria de carregar, ladeira-acima,
ladeira-abaixo, das vinhas para a adega, durante quase quinze dias
seguidos. Da rua vinha aquele cheiro inconfundível e penetrante
do sarro a escorrer pelas valetas, tingindo de rosa as poucas
ervas sobreviventes de um sítio abafado e sem chuvas. Pela
estrada, despovoada, só esta ou aquela galinha se mantinha
atarefada, de bico no chão, cobiçando o líquido doce e fresco.
A sesta roubava a vida à aldeia, e a calmaria das sonecas debaixo
das sombras das parreiras — entre um marquês de tinto saidinho
da pipa grande, a escorrer espuma e frescura —, contrastava com
a agitação das manhãs, com os homens apressados na sua
caminhada para o campo.
Da janela do quarto, Carlos admirava essas ultimas réstias de
vida e aquele tempo parado que o envolviam numa tristeza absurda.
Desviava-se-lhe o pensamento para outro sonho, outro cenário,
outra realidade. Sentia dentro de si uma inquietação sem
propósito e sem nexo, uma angústia doentia, enquanto ia
escrevendo notas no seu velho caderno de apontamentos. Céus, há
quanto não pegava naquele caderno! E porque o fazia agora? Tantas
vezes se recusara a tocar-lhe, a escrever uma linha sequer, quanto
mais a ler o que escrevera. Hoje foi um desejo dentro de si, quase
um apelo, que o impeliu para o velho caderno, para aquelas folhas
amarelas, gastas do tempo, que ao dos olhos perdidos no fim
daquela rua que não levava a sitio nenhum. Revolviam-lhe a
memória os acontecimentos dos últimos meses: a conclusão do
curso, a festa, aquela nova vivência com os pais, a Paula...
Subiu as escadas devagar, degrau a degrau, sentindo o ranger da
madeira debaixo de cada passada. Pareciam-lhe maiores aquelas
escadas, e a luz, lá ao cimo, a noite. Que desconcerto lhe
avassalava a mente, que instinto lhe dirigia os movimentos, que
desejo terrível o movia? Bateu a porta duas vezes, baixinho, como
sempre, duas pancadas envergonhadas, tímidas, covardes. Foi a
Paula que abriu. Admirada, um repente atirou-lhe os braços em
volta do pescoço, e as suas bocas colaram-se num longo beijo
doido de espasmos e encanto, numa apoteose imensa. Carlos
pegou-lhe ao colo e levou-a para o quarto. As roupas, poucas,
saltaram precocemente e os corpos iludiram-se na distância e no
tempo, unindo-se num turbilhão de encontros há tanto adiado.
Carlos perdeu-se naquele corpo de Iris, naqueles seios brancos de
Vénus, acalmou-se naquela boca de quimeras doces e amou, amou
perdidamente, como os poetas. Deitados sobre a cama, observavam em
silêncio o fumo louco a esvaír-se até ao tecto, ido daquele
cigarro "Kart" que repartiam.
— Carlos, tenho uma coisa para te dizer.
— Sou todo ouvidos.
— Estou grávida. • António Oliveira
XXII
21 de Julho de 1990
Os
cadernos, inúmeros, estavam no sítio do costume. Pelo meio,
guardanapos de papel da espessura de mortalhas, perfeitamente ao
acaso, contavam histórias e versos que nunca soube de cor,
pequenos pedaços de tédio nos cafés de fim de tarde, às vezes
antes, e folhas, muitas folhas brancas e de origem incerta,
duvidosa até. A sua vida era aquele amontoado de papéis, dois ou
três anos de prosa e de versos, religiosamente datados, alguns
pedaços de loucura também que escorreu sem saber como para a
certeza do papel. O mistério da vida e da morte permanecia em
aberto numa prosa por findar, num quase poema que a noite decerto
recusou, num simples pedaço de papel datado, sim, datado e sem
mais nada. Desfolhou ao acaso uma sebenta antiga que a memória
esquecera, duas ou três páginas ao acaso. "As casas são
matematicamente brancas e verticais. Cospem excrementos vermelhos
desbotados das portas para a cor incerta dos passeios quase
cinzentos e desfeitos, monstros de carne e de pasta enforcados em
lenços de palhaço rico. Os ponteiros quedaram-se na certeza da
física. O mundo está entalado e em pânico na recusa
subterrânea do metro esgotado entre nada e coisa nenhuma, o ciclo
da terra cumpre-se num relâmpago, na molécula última do
universo".
— Estás a ouvir? Eu disse que estou grávida.
A literatura são dois ou três versos escritos às vezes por
acaso, sem grandes preocupações estéticas e metafísicas, duas
ou três frases simples despreocupadamente ditas em momentos de
tédio. Sabia isso. Sabia-o há muito por experiência própria,
pelas obras geniais que planeara e falhara, pela escrita sem
entusiasmo às vezes feliz. A arte, a verdadeira arte, nasce do
abandono de ser, quando o artista se transforma num instrumento
mediático entre o que é e o que não sonha ser. Acreditava
profundamente nisso. Jamais se esqueceria dos versos escorridos
por acaso, sem entusiasmo, que acabavam num quase deslumbramento,
e onde por vezes não se reconhecia.
— Acorda. Estás a ouvir o que te estou a dizer?
Dois cães ladravam-se lá para os fundos. Pelo silêncio, quieto,
podia perfeitamente ser noite. A noite primeira de todas as
noites. A ansiedade crescia-lhe tremendamente depressa, sentia-o.
O peito apertava-se-lhe, devagar primeiro, até ao sufoco depois,
e galopava possesso e lúcido até ao impossível, quase a
explodir num verso do tamanho do universo. Os olhos, dois
alfinetes minúsculos, perdiam-se subitamente em horizontes
insuspeitos, e o verso, esse, vencido, escapava-se-lhe no sorriso
das mãos, quase visível, decerto feliz. • Ilídio Martins
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Não
Sei Porque Fui Dos Escolhidos Para Viver e Outros Foram Escolhidos Para Morrer
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experiências únicas que viveu desde as montanhas geladas do Perú até ao
Brasil.
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Oito questões acerca dos portugueses em New Jersey.
Pregar
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Os portugueses de New Jersey.
Imigrantes
Lusos São Portugueses de Primeira
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Unidos publicada sob o pseudónimo de José M. Costa.
Dulce
Pontes Encheu o Prudential Hall e Encerrou da Melhor Maneira Programa Português
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